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sábado, 20 de julho de 2013

HELENA de Machado de Assis


HELENA 
De Machado de Assis 
Resumo de Nicéas Romeo Zanchett 
Helena é um dos melhores livros do nosso grande escritor Machado de Assis, na sua primeira fase de feição romântica, e por ele mesmo é um livro particularmente prezado. 
De todos os do autor, é o que mais se presta a um resumo. Algo romanesco, na opinião do próprio Machado de Assis, tem força de mocidade, tem vida e muita arte de composição e de análise. 
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                     Ao morrer, deixou o conselheiro Valle, já viúvo, dois únicos parentes, um filho, Estácio, de 27 anos e engenheiro, e uma irmã solteira, D. Úrsula, de 50 e poucos anos, e que sempre vivera em sua companhia. Mas o testamento do conselheiro revelou a existência de uma outra filha, Helena, que ele reconhecia como herdeira de uma parte dos seus bens e que devia passar a viver com a família, a quem recomendava que a tratasse com desvelo e carinho. Helena estava, na ocasião, estudando num colégio de Botafogo - RJ. Tinha 17 anos. Semanas depois concluía os estudos; e D. Úrsula foi buscá-la. Não aceitava de boa mente essa incumbência, mas foi fazer o que devia. A moça, não obstante a consanguinidade agora conhecida, era de todo estranha à família. D. Úrsula, no seu íntimo,  reprovava a resolução do conselheiro; ao seu parecer bastava, como generosidade paterna, a parte do legado; era excessivo deixar-lhe também a coparticipação do afeto. Acompanhava-a nesse sentimento, e ainda com maior restrição, um velho amigo da família, o Dr. Camargo; entre as razões que o moviam, a mais forte e calada era o egoísmo de pai; tinha uma filha única, Eugênia, quase noiva de Estácio.  Estácio, por índole de coração, e por seu bom caráter, não formulou nem consentiu objeções à atitude do pai; e predispôs-se  à nova afeição fraternal, que parecia vir completar-lhe a vida doméstica. A impressão que teve de Helena foi melhor do que ele podia prever. Era uma linda moça,finamente educada e de inteligência aguda, superior à sua idade. 
                    Houve, como era natural, nos primeiros dias muito acanhamento, mas a familiaridade se fez sem demora, ainda que sem o abandono de irmãos, que se formam junto desde o berço. Em Estácio predominava sempre a surpresa do conhecimento progressivo, e a sua afeição trazia um perfume de enlevo. 
                    Helena captou também, aos poucos, a simpatia dos frequentadores da casa, salvo o Dr. Camargo, que a olhava sempre com o espírito prevenido. D.Úrsula resistia para não se deixar vencer pelas graças da sobrinha; mas teve de ceder de todo depois de uma moléstia grave em que Helena a assistiu como enfermeira dedicada, com solicitude e carinho de mãe.  O reconhecimento de D. Úrsula foi abundante e espontâneo. A primeira vez que saiu do quarto, amparando-a de um lado e do outro, Helena e Estácio  fizeram-na sentar-se em frente a uma janela da sala, que o sobrinho entreabriu para penetrar além da luz, um pouco de ar. D. Úrsula respirou longamente, como se estivesse lavando o pulmão com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiu-lhe um longo beijo, verdadeiramente maternal.  Estácio, aproximara-se; aquela manifestação encheu-o de júbilo. 
                   " Bem merecido beijo", exclamou ele. "Helena foi um anjo em todo esse tempo".
                   " Bem sei", retorquiu D. Úrsula; "foi um verdadeiro anjo, foi mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Pode ser que a medicina tenha ajudado a cura, mas o principal mérito é só teu". 
                   Helena abraçou a convalescente. 
                   "Estácio", disse esta, "agradece a tua irmã, como eu fiz". 
                    Estácio inclinou-se para Helena, afim de lhe dar-lhe um beijo fraterno de irmão. Não o conseguiu, porque Helena, desviando-se estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda, e disse: 
                   " Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta-me o aperto de mão e o afeto de todos". 
                   Estácio apertou-lhe a mão e sentiu-a trêmula. Aquele movimento não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais bela.  
                   Fosse outro o estado do coração de Estácio, e havia de parecer-lhe exagerada e descabida, tamanha reserva no trato entre irmãos.  E notar-lhe-hia também  com estranheza o tremor da mão. Mas o enlevo prevalecia nele, e não o predispunha para uma análise do sentimento dela e dele. Na verdade, amava-se, como namorados um do outro; e a convivência ajudava o amor, sem que dessem acordo da natureza dessa atração que era idílica, mas não excedia a liberdade de dois irmãos amigos. Estácio notava, é certo, que já não era tão instante o seu amor a Eugênia, e tudo era pretexto para ele ir adiando a declaração de noivado.  Comparava Eugênia e Helena; e parecia-lhe que esta era o tipo da mulher e esposa; a outra era formosa, mas tinha a vaidade de sua beleza, amava-se sobretudo a si mesma no amor que podia inspirar a outrem. "Há cem belezas como aquela", disse ele a Helena, uma vez que esta lhe notara propositadamente a formosura da amiga. E insistia para que ele resolvesse logo o noivado. Estácio prometia, continuava a adiar, mas o seu pensamento era mais ocupado por Helena do que pela futura noiva. E surgia uma razão para preocupa-lo.
                   Surpreendera a irmã entretida na leitura de uma carta, que ela procurou esconder. Suspeitou um namoro; e a suspeita parecia confirmar-se com o procedimento da moça, que de quando em quando saia a cavalo, fazendo-se acompanhar de um escravo, em vez dele, e as vezes às escondidas dele.  Entrou a espreitá-la. E um dia fez-lhe uma alusão ao motivo secreto dos seus passeios. Estava os dois na chácara de casa. A moça não respondeu à indireta.  
                  "Helena", disse ele, "você ama".  
                  A moça estremeceu, e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar-lhe todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente: 
                 "Muito! Muito! Muito!"  
                  Estácio empalideceu. A moça recuou um passo, e, trêmula, pôs o dedo na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava no seu rosto; Helena deu as costas ao irmão e afastou-se rapidamente. 
                  Pessoa que assistisse à cena teria concluído o verdadeiro sentimento dos dois. Mesmo sem ter ouvido esse e outros diálogos íntimos, compreendera-lhes o estado de alma o padre Melchior, velho capelão e amigo da família. Interviu diretamente para apressar o noivado de Estácio, o qual por fim se decidiu, a instâncias de Helena, solicitada pelo Dr. Camargo, pai de Eugênia. Pouco depois a família do Dr. Camargo teve de fazer uma viagem a Cantagalo, onde residia a madrinha de Eugênia, que adoecera gravemente. Eugênia era das possíveis herdeiras, e havendo outros parentes que assistiam a enferma, convinha-lhe estar o lado desta naqueles dias de crise. Era o que pensava o Dr. Camargo; a filha, porém, só iria indo também o seu noivo.  Estácio não pode levar avante a sua relutância, e partiu. Mas foi só com o corpo; a alma ficou-lhe toda em casa junto de Helena;  e é o que exprimia a efusão d'uma longa carta escrita à irmã. Leu-a o padre Melchior, quis ler também a resposta de Helena, e senhor do segredo confessado e inconfessável dos dois, confiante também no caráter de Helena, promove a sua anuência ao pedido de casamento que lhe fez então uma amigo de mocidade de Estácio, Mendonça,  recém-chegado da Europa. Só faltava a aprovação de Estácio, e com ele contava Mendonça. Mas apenas teve a notícia em Cantagalo, Estácio partiu para o Rio, e ao contrário da esperança de Mendonça, opôs ao noivado tanta displicência de maneiras e tais razões, que o amigo, contra o voto do padre Melchior, contra a declaração de Helena, entendeu retirar o seu pedido. A razão principal, antes pretexto, que opunha Estácio era a existência duma afeição oculta de Helena, e sobre a qual ele a interrogara. Na sua consciência confusa apontavam as dúvidas sobre o motivo dos pais de Helena.  E uma manhã, em que ele, por aturdir-se, saíra a caçar, aconteceu ver justamente Helena,  que saía de uma casa no caminho da Tijuca, a mesma casa desenhada por ela num quadro com que  e presenteara no dia de seu aniversário. O pagem escravo esperava-a com o cavalo a pequena distância. Estava ali, pois, a explicação dos passeios matinais de Helena. Não pode vencer o desejo de ir ele também à casa misteriosa, e uns arranhões sangrentos da mão, ao apoiar-se numa cerca de espinhos, deram-lhe ali logo o pretexto para bater à porta da casa como a pedir água para lavar-se do sangue. Abriu-lha o morador, homem de meia idade, de aspecto pobre, mas gentil, que se prontificou logo em fazer-lhe os curativos e o entreteve em palestra. 
                 O mistério crescia, com o desvanecimento da hipótese de que as visitas de Helena àquela casa  tivessem um intuito de caridade.  Nessa mesma tarde, Estácio, em retribuição a uma carícia efusiva de Helena, tomou do desenho dela e apontou-lhe a casa com um olhar, que exprimia dor, interrogação, e intimativa. A moça nada pode responder, tamanha foi a sua comoção. Recolheu-se a seu quarto, donde não saiu todo esse dia, recusando alimento.  Houve então um conselho de família, com a presença do padre Melchior, e afinal explicou-se o mistério. O morador da casa, Salvador, era  pai de Helena; o reconhecimento desta como filha, por parte do conselheiro Valle, fora um ato de piedosa afeição, na crença de que havia morrido o pai, na verdade só traído pela amante, mãe de Helena, que ao conhecer o conselheiro lhe ocultava o motivo  da ausência de Salvador. 
                   Este, apesar da afeição que tinha à filha, resignava-se a ser tido como morto, preferindo o seu sacrifício ao da felicidade de Helena. Revelara-se mais tarde à filha, e conseguiu com os seus argumentos fazer com que ela não rejeitasse  o reconhecimento testamentário e a parte da herança. Contentava-se com o sentir de longe o seu amor filial, e ter de quando em quando as suas visitas. Obtidas todas as explicações e comprovadas pelas cartas anteriores de Salvador e de Helena, ficou acordado que não mudasse a situação desta; a afeição da família não mudara, pela pessoa de  Helena, e era imprescindível evitar-se o escândalo da revelação, que prejudicava a memória do conselheiro Valle.  
                  E foi o que prevaleceu sobre o sentimento de Estácio, a quem sorria a possibilidade de realizar  o amor, de que tinha enfim a consciência. Helena, porém, não se conformava à ideia de que a pudessem julgar  uma aventureira. Se as afirmações que lhe faziam de que a estima de todas era igual e porventura ainda maior que antes, não lhe permitiam deixar a casa; não fraqueou a sua resolução de deixar-se morrer, para não afrontar a vergonha da situação. Na verdade o que lhe fazia o desespero era a necessidade de continuar a ser tida como irmã de Estácio, a quem ela amava. A morte desejada como solução veio provocada por ela. No delírio da febre, dois nomes volviam frequentemente aos lábios da enferma, o de Estácio e o de seu pai. Pouco antes de fechar para sempre, os olhos dela já volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o recebeu, olhar de amor, de saudade e de promessa. 
                  "Ânimo, meu filho!  disse a Estácio o capelão. 
                  " Perdi tudo, padre mestre!" gemeu Estácio. 


O resumo de grandes obras literárias, que tenho feito,  tem como principal objetivo despertar o interesse dos leitores para conhecer a literatura dos maiores escritores de todos os tempos. 
Nicéas Romeo Zanchett 

                


sexta-feira, 12 de julho de 2013

FELIZ ANIVERSÁRIO - Por Clarice Lispector - Laços de Família



FELIZ ANIVERSÁRIO 
Por Clarice Lispector 
 Laços de Família 
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                 A família foi pouco a pouco chegando.  Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de "pailletès" e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta.  O marido não veio por razões óbvias; não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados - e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas de babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. 
                  Tendo Zilda - a filha com quem a aniversariante morava - disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como  numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada.  "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em seguida  sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com "pailletés". 
                   Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda - a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante - e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se como bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca berta. 
                   E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.
                   Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos  de papelões alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito "Happy Birthday", em outros "Feliz Aniversário". No centro havia disposto o enorme bolo açucarado.
                   Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumarem a mesa. 
                   E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo  depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifando-lhe um pouco de água de colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado - sentara-a à mesa.  E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa. 
                   De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa em ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo. 
                   Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema. 
                   Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nenhum segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria - que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema - entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente ruidosa se cumprimentando como se todos tivessem esperando embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala - e inaugurando a festa. 
                  Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. 
                   - Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho  mais velho, agora que Jonga tinha morrido. Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos. 
                   Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça, em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente. 
                   - Oitenta e nove anos!, ecoou Manuel que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram  menos sua esposa. 
                   A velha não se manifestava. 
                   Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactus - nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo  assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes,  amarga, irônica. 
                   - Oitenta e nove anos! repetiu Manuel aflito, olhando para a esposa. 
                   A velha não se manifestava. 
                   Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente do croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo. 
                    - Não senhor! responde José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios! 
                    - Está certo, está certo! recuou Manuel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento. 
                    - Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe! 
                    Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro - ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos. 
                    E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas ninguém elogiou a ideia  de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas - ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, serviu como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela.  E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmado com um olhar autoritário os mais hesitantes e surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" - e todos de repente  começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhos esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram  em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês. 
                    Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira. 
                    Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor - e acendeu a lâmpada. 
                    - Viva mamãe! 
                    - Viva vovó! 
                    - Viva d. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido. 
                    - Happy Birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett. 
                    Bateram ainda algumas palmas ralas. 
                    A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco. 
                    - Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com as íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parte o bolo vovó!
                    E de súbito a velha pegou a faca. E sem hesitação, como  se hesitando um momento eta toda caísse para frente, deu a primeira talhada com o punho de assassina. 
                    - Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia  se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava  um pouco horrorizada. 
                    - Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais folego do que eu, disse Zilda amarga. 
                   Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha. 
                   Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de reboliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda. 
                    Enquanto foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
                    E por assim dizer a festa estava terminada. 
                    Cordélia olhava ausente para todos, sorria. 
                    - Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante. 
                    - Está certo, está certo! recolheu-se Manuel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manuel sorrir e uma contração passou-lhe rápida pelos músculos d cara.  
                    - Hoje é dia da mãe! Disse José. 
                    Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. 
                    Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles filhos e neto e bisneto que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem.  Mas piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh! o desprezo pela vida que falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem  a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom.  Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha . Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão. 
                   - Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe,jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. - Mamãe,  que é isso! disse baixo, angustiada. A senhora nunca fez isso! acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela  percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança. 
                   - Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos. 
                   Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio. 
                   Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos - provavelmente já além dos cinqüenta anos,  que sei eu! - os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos - ainda mais fracos e mais azedos - haviam escolhido.  Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherzinhas que casavam mal os filhos que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos - nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava. 
                   - Me dá um copo de vinho! disse. 
                   O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão. 
                   - Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha. 
                   - Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante.  Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy! ordenou. 
                   Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, com máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha.  Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis. 
                   Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade. 
                   Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. 
                   Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido. 
                   Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três  filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérola, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia.  Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.  
                    E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. 



                                                    Clarice Lispector - Laços de Família. 
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Pesquisa e Postagem: Nicéas Romeo Zanchett