Minha lista de blogs

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O ANEL DE POLICRATES - Por Machado de Assis


O ANEL DE POLICRATES 
Por Machado de Assis
.
                 A - Lá vai o Xavier. 
                 Z - Conhece o Xavier? 
                 A - Ha que anos? Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo. ..
                 Z - Que rico? que pródigo? 
                 A - Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia língua de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres!  Nem toda a pompa de Salomão pode dar ideia do que era Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as  prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente por uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier.  Capeava os cigarros com um papel  de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha d raios de sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava  o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor de rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo oque o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens... 
                 Z - Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda  com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo. 
                 A - Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo... 
                 Z - Ah! - Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro... 
                 A - desde quando o conhece?  
                 Z - Ha uns quinze anos.
                 A - Upa! Conheço-o ha muito mais tempo, desde que  ele estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquês do Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis,  e até contrarias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra á lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.  Quem conversava com ele senti vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos.  Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do castelo, a troco das riquezas que  os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
                 Z - Realmente... 
                 A - Ah! impagável. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e resolveu ir  logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os rito, os vasos, as roupas, os costumes...   
                 Z - Era então doido? 
                 A - Originalzão apenas? Odeio os carneiros de Panurgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous sacavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes de comer um mau bife em mesa separada. 
                 Z - Entretanto gostava da sociedade.
                 A - Gostava da sociedade, mas não amava os sócios.  Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que lhe respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia de água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias de água, foi a sua conclusão. 
                 Z - Nada modesto. Que lhe disse o Pires? 
                 A - O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, de aí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
                 Z - É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo... 
                 A - Explica-se facilmente. Ele espalhava ideias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que  era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era o derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos.  Espalhava tudo, ao acaso,às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam logo...
                 Z - Como a das cuias.
                 A - Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência  de regime, não admira que fosse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito tem limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol.  O Xavier não só perdeu as ideias que tinha, mas até exauriu a faculdade de criar; ficou oque sabemos. Que moeda rara se lhe hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que drama de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho...
                 Z - Cuia, emfim. 
                 A - Justamente: cuia. 
                 Z - Pois muito me conta. Não sabia nada disso. fico inteirado; adeus. 
                 A - Vai a negócio? 
                 Z - Vou a um negócio. 
                 A - Dá-me dez minutos? 
                 Z  - Dou-lhe quinze. 
                 A - Quero referir-lhe a passagem mais interessante da  vida de Xavier. Aceite o meu abraço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, - "uma bonita rosa"; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos  sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se,   e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue frio, a arte do cavaleiro.  Então, o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E dai veio uma ideia;comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: "Quem não for cavaleiro, que o pareça." Realmente, não era uma ideia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como a casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Policrates? 
                 Z - Francamente, não. 
                 A - Nem eu; mas aqui vai oque me disse Xavier. Policrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grane sacrifício; deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna estava tão apostada de cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... 
                 Z - Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas... 
                 A - Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambólico do pobre diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha ideia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Policrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão. 
                 Z - Ora essa!
                 A - Não é estrambótico? Policrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo oque era a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços  ou antes, os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito oque ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com uma troca de um adjetivo. " Meu pobre anel, disse-lhe ele, eis-te emfim no peixe de Policrates." Mas a ideia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se.  Dias depois, foi convidado a um baile; era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu um grupo de pessoas que louvava a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu compara o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era- excelente. " - Entra, meu querido anel, disse Xavier, entra no dedo de Policrates." Mas de novo a ideia bate as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois... 
                Z - Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
                A - Justo. 
                Z - Mas, emfim, apanhou-o um dia.
                A - Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto um conto fantástico, à maneira de Edgardo Poe,  uma página fulgurante, pontuada de mistérios, - s~]ao as suas próprias expressões; - e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. "Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens em mim o Policrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito."  Dai em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha por a mão em cima da ideia, ela batia as asas, plas, plas, plas, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engoli e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contou naquele dia, que dizer-lhe três... 
                 Z - Não posso; lá se vão os quinze minuto. 
                 A - Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia emfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: "O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é." Ah! emfim, exclamou Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir. Mas, em vão! a ideia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muta gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cumulo de benefícios; era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se  ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. "D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que o é." O autor com olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: - "Meu querido anel..."
                 Z - Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas. 
                 A - O último foi primeiro. Já disse que o Xavier transmitira a ideia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre vê-lo; e o infeliz ainda o pode conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: " Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão; se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcei por parecê-lo bom." Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a ideia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois  estalou um risinho de escarno, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus. 
.
BREVE BIOGRAFIA 
Joaquim Maria Machado de Assis, poeta e romancista brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 21 de Junho de 1839 e faleceu em 25 de Setembro de 1908. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi até morrer o seu presidente sempre reeleito. Escreveu: Crisalidas, 1864; Falenas, 1870; Americanas, 1875, três volumes de versos que o consagraram como poeta. Da sua vasta obra de romancista temos: Don Casmurro; Quincas Borba; Memórias póstumas de Brás Cuba, 1881; Memoriam de Aires; Helena; Jayá Garcia; A mão e a Luva. Para o teatro escreveu: O caminho d posta; Uma Ode de Anacreonte. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.
              







terça-feira, 27 de agosto de 2013

O ENTERRO - Por Coelho Neto


O ENTERRO 
 Por Coelho Neto 
               Outubro. O sol, em pleno meio-dia, alargava por todo o campo uma luz fixa e cáustica. Não havia sombra, tudo resplandecia de claridade e um tédio pesado e morno de preguiça parecia ter-se apoderado das próprias coisas, prendendo-as numa imobilidade morta, de onde nem mesmo o bulir das folhas tirava o doce murmúrio, tão agradável ao ouvido de quem trabalha sob rude prancha de uma soalheira viva. 
                Nas escarpas, esterilmente nuas, cabras, berravam com melancolia, e, de momento em momento, um boi magro surgia entre as palhas secas dos milhos, lento, estafado e mole, esticava o pescoço esfolado pela canga e mugia, ficando depois com o focinho à altura das praganas louras, contemplativo e tristonho, a olhar o céu de um azul liso e forte. 
                Por baixo, num largo planalto de terra vermelha, limpa de fresco, recentemente gredada, uma charrua arrastava-se ao passo tardo de dois touros. 
                Do céu quente, sob a radiação nevrótica do sol, caía uma paz cansada, e na vasta planície nua, toda de restolho, ceifada de extremo a extremo, erguia-se apenas um casebre tosco, metido dentro de um cercado, à sombra quieta de um mangueiral ramalhoso.  
                 A par da estrada, de um amarelo sujo e peco, orlada de espinhais mirrados, corria, murmuroso e pesado, o rio sonolento, onde a figura solitária de uma lavadeira brandia panos, metida n'água até aos joelhos.  No alto de um monte, fechado de mato intenso, ardia tremulamente, fumarando espirais de cor turquesa nova, um fogo de estio, aceso espontaneamente, como outrora arderam no cume do Sinai as sarças de onde surgiu Jeová ditando a Moisés as leis do Decálogo.  
                 Para além andava-se em recua, gente miúda, pequena como as ervas rentes, diminuída consideravelmente pela distância, mourejava; ouvia-se o relincho prolongado de um carro primitivo, que vinha sulcando a terra com rodas compactas, atulhado de lenha.
                  De repente uma voz fina partiu a cantar gemedoramente e, antes de morrer de todo, um coro tomou do eco e entoou o mesmo canto, num ritornelo grave. Dois homens, a cavalo, surgiram detrás da barranca; em seguida as madrinhas, duas vacas mansas, tinindo cincerros; a boiada depois, submissa e vagarosa, turbilhonando o pó vermelho da estrada, e por fim um magote de campeiros, pampilho em punho, cantando numa toada indolente o coro pastoral. 
                  A tropa ganhou o campo. Reboaram gritos de: - EH! Ahuu! EH! lou! cá, cá, cá, ehou!
                  E o gado  solto, tresmalhou na pastagem, começando, à luz intensa e abafada, o rouco mugir dos touros, um após outro, dois a um tempo, e o galope dos bezerros, enquanto os guieiros, pulando abaixo dos lombilhos, desciam na direção do rio, juntos, ficando um só de guarda. 
                  O céu, para os lados do oriente, ia tomando uma cor baça de mercúrio e começava a arejar o escampo uma brisa fraca, trescalando a queima. 
                  Aves piavam e no alto giravam malabarescamente urubus de atalaia. De vez em quando, no cercado do casebre, um galo soava a voz estrídula, e outros, daqui e de lá, numa sucessão pausada, cocoricavam em resposta. 
                  Rolavam, de longe em longe, como num aviso de tormenta próxima, surdos rumores de trovões; mas a luz, cada vez mais incendida, cada vez mais escaldante e mais clara, parecia desmentir o anúncio da tempestade. Revoadas de pombos cruzavam com um tatalar sonoro, seguindo o rumo do vento, numa batida rápida, e, no quintalejo do casebre, um vulto de mulher, alta e fina, estacou entre os capins baixos, levou a mão espalmada à altura dos olhos, fitou a luz, e lentamente começou a recolher a roupa que corava no verde estendal de grama, enquanto um menino ia e vinha, a correr, carregando à cabeça paveias de capim novo, e as aves domésticas, cacarejando, acoutavam-se debaixo da ramaria frondosa das mangueiras. O vento começava a zurzir as folhas e escurecia com a rapidez com que descem os crepúsculos no inverno. 
                  Um frêmito de claridade percorreu todo o céu argamassado de nuvens e o rumor trovejante roncou mais forte, mais próximo, mais demorado; o ar pesava sufocante e, de vez em vez, circulava um redemoinho de poeira, em funil, dentro do qual ricocheteavam folhas. 
                   O dobre de um sino encheu momentaneamente o silêncio com a vibração ondulante de um misticismo meigo; outro dobre ressoou mais brando, como se partisse de mais longe, e logo após um, forte e claro, conforme as voltas bruscas do vento que soprava grosso. 
                  Dobrava afinados. Era o saimento da Teçaí, velha cabocla septuagenária, descendente dos fortíssimos Goytacazes, nascida e criada nesse lugar, primeiramente chamada de Taba de Itamina, pelo constante forgacho que ardia no monte, que diziam ser a alma pagã de Tagiíra, morta ao trocar o primeiro beijo, fulminada por Tupan justamente quando ia entregar a sua virgindade à volúpia brutal de um aventureiro branco. 
                  A gente simples de Itamina respeitava e temia a velha Teçaí, uns pelas suas pragas e malefícios, outros pelo terror da lenda que se criara em torno do seu nome. 
                  "Teçaí, a mãe das lágrimas, diziam em trovas os bardos das serranias, era filha da Yara Poranghi, fecundada por um raio de lua nova em Agosto. Nascera em uma Sexta-feira, à noite, à hora do primeiro cantar do galo. Na sua mocidade seus olhos tinham o poder de envenenar os homens e eram tão fortes seus olhos que, se por acaso se levantavam para o céu, as estrelas de Deus caíam moribundas." 
                   Era por isso que Itamina, à noite, quando no céu passava uma estrela cadente, os rústicos, perseguindo-se, diziam: 
                   - Mais uma vítima dos olhos maus de Teçaí! 
                   Os que conheceram a moça falavam com assombro da sua grande beleza, mas ninguém se bagou jamais de a ter possuído. 
Sobre os seus cabelos corria uma tradição ingênua e poética. Dizia uma canção: 
                   " Nos cheirosos cabelos de Taçaí, longos, negros e sedosos, nascem rosas e cravos, lírios e bogaris. "
                   " A cabeça de Teçaí é como um jardim cuidado - as flores das suas tranças dormem em botões fechados e, pela manhãzinha, justamente como as do campo, acordam desabrochadas." 
                    A poesia popular inspirara-se na estranha paixão índia pelas flores; porque ela andava sempre toucada de ramilhetes acreditavam que eles nasciam nos seus cabelos cheirosos.  
                    Á noite, os que viajavam, passando junto ao rio, achavam-na a bailar, falando á lua e às águas numa linguagem singular. Durante o dia cultivava a sua horta, junto à igreja.
                    Sucumbira de velhice, diziam, e lá ia o seu enterro triste, acompanhado por um borrego malhado, seu único amigo, e os que a levavam; ninguém mais.  O sino, entretanto, gemia pela pagã, a igreja abençoava a bárbara,   mas o céu, a mais e mais fechado, parecia trancar-se para não receber a alma infiel da índia feiticeira, cujo corpo encarquilhado ia a caminho da cova, ao tinir da sineta e ao triste balar do borrego, encerrado em uma arca, que nem um caixão lhe deram os piedosos cristãos de Itamina. 
                    Súbito, um clarão instantâneo iluminou o campo; durante uma pausa, o sino vibrou choroso, mas um formidável estrondo atroou os ares, abalando a terra; outro, logo em seguida, com um estalar de raio. Os bois assustados deitaram a correr aos galões, através da planície. Num ápice todos os campeiros montaram e a um grito partiram rebolando o sedenho, cravando de rijo as chilenas, atrás do gado que sumia perseguido pelos roncos da tormenta, na direção de um vale seco, cavado entre rochas. Mas a chuva varreu o campo, grossa, rabanando, açoitada por um vento desabrido que se levantara.  Sucediam-se os relâmpagos e os trovões ribombavam; longe, os gritos dos campeiros que afrontavam a tempestade brandindo os compridos ferrões, e além, o borrego da defunta, parado, indeciso, balando sob o aguaceiro, a olhar comovedoramente os homens que corriam sacolejando a morta dentro da velha arca. 
                   Sereno, tranquilo, continuando a bater à porta do céu com a sua prece, o sino, entretanto, insistia no seu ofício de religioso, triste, no púlpito do campanário, rezando pela morta o seu piedoso Réquiem monossilábico de sons. 
BREVE BIOGRAFIA 
Henrique Coelho Neto, escritor r romancista brasileiro, nasceu em Caxias, Maranhão, em 1864. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.  A sua obra, muito extensa, compreende mais de sessenta trabalhos, entre romances, novelas, contos e obras de teatro. Foi professor no Ginásio do Rio de Janeiro. Escreveu: Rapsódias, contos; A Capital Federal, romance; Praga, novela; Baladilhas, contos; Inverno em flor, romance; O Morto; romance; A descoberta da índia., narrativa histórica. Por muito tempo foi o escritor mais lido do Brasil. Por esta obra, você podem ter uma ideia de sua grandiosidade literária. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.