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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O ANEL DE POLICRATES - Por Machado de Assis


O ANEL DE POLICRATES 
Por Machado de Assis
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                 A - Lá vai o Xavier. 
                 Z - Conhece o Xavier? 
                 A - Ha que anos? Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo. ..
                 Z - Que rico? que pródigo? 
                 A - Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia língua de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres!  Nem toda a pompa de Salomão pode dar ideia do que era Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as  prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente por uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier.  Capeava os cigarros com um papel  de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha d raios de sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava  o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor de rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo oque o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens... 
                 Z - Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda  com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo. 
                 A - Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo... 
                 Z - Ah! - Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro... 
                 A - desde quando o conhece?  
                 Z - Ha uns quinze anos.
                 A - Upa! Conheço-o ha muito mais tempo, desde que  ele estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquês do Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis,  e até contrarias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra á lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.  Quem conversava com ele senti vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos.  Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do castelo, a troco das riquezas que  os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
                 Z - Realmente... 
                 A - Ah! impagável. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e resolveu ir  logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os rito, os vasos, as roupas, os costumes...   
                 Z - Era então doido? 
                 A - Originalzão apenas? Odeio os carneiros de Panurgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous sacavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes de comer um mau bife em mesa separada. 
                 Z - Entretanto gostava da sociedade.
                 A - Gostava da sociedade, mas não amava os sócios.  Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que lhe respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia de água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias de água, foi a sua conclusão. 
                 Z - Nada modesto. Que lhe disse o Pires? 
                 A - O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, de aí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
                 Z - É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo... 
                 A - Explica-se facilmente. Ele espalhava ideias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que  era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era o derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos.  Espalhava tudo, ao acaso,às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam logo...
                 Z - Como a das cuias.
                 A - Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência  de regime, não admira que fosse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito tem limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol.  O Xavier não só perdeu as ideias que tinha, mas até exauriu a faculdade de criar; ficou oque sabemos. Que moeda rara se lhe hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que drama de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho...
                 Z - Cuia, emfim. 
                 A - Justamente: cuia. 
                 Z - Pois muito me conta. Não sabia nada disso. fico inteirado; adeus. 
                 A - Vai a negócio? 
                 Z - Vou a um negócio. 
                 A - Dá-me dez minutos? 
                 Z  - Dou-lhe quinze. 
                 A - Quero referir-lhe a passagem mais interessante da  vida de Xavier. Aceite o meu abraço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, - "uma bonita rosa"; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos  sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se,   e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue frio, a arte do cavaleiro.  Então, o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E dai veio uma ideia;comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: "Quem não for cavaleiro, que o pareça." Realmente, não era uma ideia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como a casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Policrates? 
                 Z - Francamente, não. 
                 A - Nem eu; mas aqui vai oque me disse Xavier. Policrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grane sacrifício; deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna estava tão apostada de cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... 
                 Z - Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas... 
                 A - Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambólico do pobre diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha ideia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Policrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão. 
                 Z - Ora essa!
                 A - Não é estrambótico? Policrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo oque era a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços  ou antes, os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito oque ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com uma troca de um adjetivo. " Meu pobre anel, disse-lhe ele, eis-te emfim no peixe de Policrates." Mas a ideia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se.  Dias depois, foi convidado a um baile; era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu um grupo de pessoas que louvava a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu compara o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era- excelente. " - Entra, meu querido anel, disse Xavier, entra no dedo de Policrates." Mas de novo a ideia bate as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois... 
                Z - Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
                A - Justo. 
                Z - Mas, emfim, apanhou-o um dia.
                A - Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto um conto fantástico, à maneira de Edgardo Poe,  uma página fulgurante, pontuada de mistérios, - s~]ao as suas próprias expressões; - e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. "Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens em mim o Policrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito."  Dai em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha por a mão em cima da ideia, ela batia as asas, plas, plas, plas, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engoli e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contou naquele dia, que dizer-lhe três... 
                 Z - Não posso; lá se vão os quinze minuto. 
                 A - Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia emfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: "O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é." Ah! emfim, exclamou Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir. Mas, em vão! a ideia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muta gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cumulo de benefícios; era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se  ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. "D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que o é." O autor com olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: - "Meu querido anel..."
                 Z - Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas. 
                 A - O último foi primeiro. Já disse que o Xavier transmitira a ideia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre vê-lo; e o infeliz ainda o pode conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: " Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão; se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcei por parecê-lo bom." Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a ideia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois  estalou um risinho de escarno, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus. 
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BREVE BIOGRAFIA 
Joaquim Maria Machado de Assis, poeta e romancista brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 21 de Junho de 1839 e faleceu em 25 de Setembro de 1908. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi até morrer o seu presidente sempre reeleito. Escreveu: Crisalidas, 1864; Falenas, 1870; Americanas, 1875, três volumes de versos que o consagraram como poeta. Da sua vasta obra de romancista temos: Don Casmurro; Quincas Borba; Memórias póstumas de Brás Cuba, 1881; Memoriam de Aires; Helena; Jayá Garcia; A mão e a Luva. Para o teatro escreveu: O caminho d posta; Uma Ode de Anacreonte. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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