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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A VOZ DAS PEDRAS - Por Coelho Netto


A VOZ DAS PEDRAS 
 Por Coelho Netto 
               Áspero, todo eriçado de rochas, o solo estéril forrado de pedregulho, sem a grata folhagem de uma árvore, só com hirtas spatas de secos e amarelos agaves, o sítio lúgubre atroava com o retumbar das águas estrondosas dum rápido que espumava, refervendo em cachões, no fundo da grota donde subia uma auréola de névoa na qual o sol recurvava um iris deslumbrante. As mesmas águias impávidas fugiam, a largo voo, daquela paragem de pavor, só os morcegos e os mochos viviam em locas: uns oscilando pendurados pelas asas às arestas das pedras, outros imóveis, de olhos muito abertos, como emblemas de tristeza pousados no fundo lapidar das cavas. 
                Tal era o sítio funerário de onde, todas as tardes, subiam os brados melancólicos que assombravam os pastores e faziam uivar os rafeiros assustados. Desde que o sol  começava a pender para as serras ninguém ousava passar nas imediações daquele lugar sinistro. O mesmo gado, ao soarem Trindades, descia atropeladamente, fugindo à beira do vale, a mugir, abalar como assombrado de algo que vira. Cada qual narrava um caso e, nas cabanas, ao luzir do fogo, falava-se baixinho do encanto do vale. 
                 Tão diversas fábulas narravam os homens tímidos, que eu quis conhecer a verdade e resolvi descer afoitamente ao vale. Ofertas que fiz aos rústicos para que me acompanhassem foram todas rejeitadas, e não houve uma voz que animasse o meu desejo, todas vinham enfraquecê-lo com presságios de morte: 
                - Que ide buscar, senhor? Não vos queirais medir com o que é do inferno. Se fiais nas armas é porque não conheceis o inimigo - não há ferro que o penetre, nem bala que lhe faça mossa. 
                 Deixei as palavras medrosas e, atendendo à minha resolução, parti. 
                 Seguindo a trilha sinuosa que abre, através da floresta, uma passagem sombria, ouvindo os pios das aves recolhidas, gozando o aroma das flores entreabertas, antes mesmo de chegar à rampa alcantilada ouvi a voz do encanto a gemer no silêncio da tarde lívida. 
                 Detive-me irresoluto, mas violentando a coragem, prossegui e, deixando as últimas árvores, dei com a grota, tão negra que a noite parecia nela condensar-se, subindo e espalhando-se nos ares como fumo espesso. 
                 Uma voz proferia; prestei o ouvido ao clamor e logo distingui um nome de mulher. Abeirando-me da rampa abrupta, inclinando-me agarrado aos pendidos ramos, pude ver, pude ouvir. 
                 Parando no fundo da grota um moço bradava. Era um rapaz de herdade que eu sempre tivera por idiota ao vê-lo, no campo, falando às árvores e aos passarinhos, beijando as flores ou, de pé, à beira do riacho, chorando sobre as águas. Perdera a noiva, dissera-me, e vivia a recordá-la percorrendo os seus lugares preferidos, acariciando as flores e as árvores que ela mais quisera e pedindo aos pássaros que andam nos ares, que levassem as suas saudades ao Paraíso.
                 Era ele... Pobre duende amoroso! Reconhecendo-o logo resolvi descer e lá fui, resvalando pela ribanceira, até o fundo da grota pedregosa. 
                 O moço bradava e o eco respondia. Cheguei-me ao triste e, tirando-o do enlevo em que jazia, interroguei-o:
                 - Que fazeis? 
                 - Ouço-lhe a voz. Todas as tardes com o silêncio, desço ao vale, reclamo da morte e o espírito da minha amada, e interrogo-o para convencer-me de que ainda me não esqueceu e também para não deixar que se desvaneça a lembrança do que juramos. Ela era ainda uma louquinha quando morreu - sorria a todos... e lá em cima há tantos jovens formosos que se foram da terra no melhor dos anos... Quereis ouvi-la? 
                  E o mísero bradou o doce nome e logo o vale atroou se-turno. 
                  - Mas são as pedras que vos respondem, disse eu; é o eco que torna aos vossos ouvidos em som, que é o que há de material na palavra, o espírito, que é a ideia, desaparece no ar. Não é a vossa amada que vos responde,são as rochas do vale que refletem os vossos brados. Se quereis convencer-vos, deixai-me chamar a vossa amada. 
                  E bradei; e as pedras retumbaram. O moço fitou-me pálido e assombrado. de novo bradei, de de novo o eco repetiu o meu brado. Então? fitei nele os olhos - o mísero chorava e por entre soluços disse-me: 
                  - Vieste matar a ilusão da minha alma. Eu vivia por ela, chorando e bendizendo a sua morte porque, se sinto a falta do seu rosto formoso não a vejo sorris aos outros como sorria, e agora que o túmulo a conserva presa, certo de que era só minha, ainda a encontro volúvel como era em vida, respondendo a todos como a todos respondia. Ai! de mim, ai! de mim! 
                 - Mas são as pedras que respondem. 
                 - As pedras... e seria também de pedra o seu coração para que a todos respondesse? A quantas jurou ela amor? a quantos! nem a morte corrigiu. Ela aqui jaz enterrada e do fundo da cova responde com a mesma facilidade com que atendia ao apelo dos moços que iam encontrá-la, sorrindo, junto à sebe florida do seu jardim. Não são as pedras que respondem, é o seu próprio coração que fala. Ela foi sempre volúvel! Ela foi sempre volúvel!...
                E o mísero rompeu a soluçar tão alto que as pedras, talvez com pena, soluçaram com ele. 
                Oh! a voz da mulher ingrata é como a dos vales côncavos. Que há nos vales vazios?  A bruma efêmera que se desfaz igual às juras dos corações volúveis. 
                Escondei-vos, namorados, e mandai que outro invoque o amor da vossa amada, mas fugi em tempo para não terdes o desengano. Ai! de mim...
                E eis como eu descobri o encanto e desfiz o assombro do vale triste... 
                Hoje há um homem que foge ao lugar sinistro; é o louco enamorado que lá não volta, porque, como se tornou o caso conhecido, o rapazio do lugarejo ajunta-se no vale e brada pela morta infiel e a todos as pedras respondem... O mísero, de longe, ouvindo o clamor e... 
                Quantos corações são feitos daquelas pedras...

BREVE BIOGRAFIA 
Henrique Coelho Netto, escritor e romancista brasileiro, nasceu em Caxias, Maranhão, em 1864. Pertenceu a Academia Brasileira de letras. A sua obra é muito extensa, compreende mais de sessenta trabalhos, entre romances, novelas, contos e obras de teatro. Foi professor do Ginásio do Rio de Janeiro. Escreveu: Rapsódias, contos; A capital Federal, romance; Praia, novela; Baladilhas, contos; Inverno em Flor, romance; O Morto, romance; A descoberta da Índia, narrativa histórica, etc. Morreu no Rio de Janeiro em 28 de novembro de 1934. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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