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quinta-feira, 21 de abril de 2011

O ENFERMO - Machado de Assis.

                               O ENFERMO - de Machado de Assis. - 
                                 Memórias Póstumas de Brás Cubas
Virgília se desfazia toda em afagos ao velho parente. Ela ia recebê-lo à porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapeu e a bengala, dava-lhe o braço e levava-o a uma cadeira, ou à cadeira, porque lá havia a "cadeira do Viegas", obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anciã. Ia fechar a janela próxima, se havia alguma brisa, ou abri-la, se estava calor, mas com cuidado, combinando de modo que lhe não desse um golpe de ar. 
- Então? hoje está mais fortezinho...
- Qual! Passei mal a noite; o diabo da asma não me deixa. 
E bufava o homem repousando a pouco e pouco do consaço da estrada e da subida, não do caminho porque ia sempre de sege -(charrete).  Ao lado, um pouco mais para a frente, sentava-se Virgília, numa banquinha, com as mãos  nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonhô chegava à sala, sem os pulos de costume, mas discreto, meigo, sério. Viegas gostava muito dele. 
- Vem cá, nhonhô, dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla algibeira, tirava uma  caixinha de pastilhas, metia uma na boca e dava outra ao pequeno. Pastilhas antiasmáticas. O pequeno diza que eram muito boas. 
Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas, Virgília compria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as pedras com a mão frouxa e tardia. Outras vezes, desciam a passear na chácara, dando-lhe ela o braço, que ele nem sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma légua. Iam, sentavam-se, tornavam a ir, a falar de coisas várias, ora de um negócio de família, ora de uma bisbilhotice de sala, ora enfim de uma casa que ele meditava construir, para residência própria, casa de feitio moderno, porque a dele era das antigas, contemporânea de el-rei Dom João VI, à maneira de algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de São Cristóvão, com as suas grossas colunas na frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituido, e já tinha encomendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgília chegaria a ver o que era um velho de gosto. 
Falava, como se pode supor, lentamente e a custo, intervalo de uma arfagem incômoda para ele e para os outros.
(Memórias Póstumas de Brás Cubas,  Machado de Assis).
Pesquisa e postagem > Nicéas Romeo Zanchett 
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quarta-feira, 13 de abril de 2011

CAÇADA - José de Alencar

                    CAÇADA - De O GUARANI- José de Alencar
Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam "aimará", apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, côr de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos prêtos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da fôrça e da inteligência.
Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam ao lado esquerdo duas plumas matizadas, que, descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos dilicadas; a perna ágil e ervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sôbre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e a flexa com amão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de  si um longo forcado de pau enegrecido pelofogo.
Ali, por entre a folhagem, distingüiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vêzes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sôbre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor de sangue da vítima.
O índio, sorrindo e molemente encostado ao tronco sêco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimígo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na estrada da clareira.
Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertara o forcado, endireitou-se de nôvo; sem deixar a sua posição,  nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.
Estendeu o braço e fêz com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.
Como, porém o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as fôlhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:
- É meu!...meu só!
Estas palavras foram ditas em português com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.
O italiano riu.
- Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga? ... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo, ela vo-lo agradecerá.
Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro.
Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demostração ofenciva.
Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
A um sinal de Álvaro Sá, os cavaleiros prosseguiram a marcha, e entranharam-se de novo na floresta.
O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pêlo eriçado, não ousava investir nem retirar-se temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.
Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e seu adversário uma distância de trinta palmos.
 O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto: a onça, com seus instintos carniceiros e a sêde voraz de sangue, tinha visto os cavalos e desdenhava o homem, fraca prêsa para saciá-la.
Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou da cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço, e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço à sua altura.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi aompanhado por um bramido da fera: a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoutando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.
O tigre tinha se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente.
Era uma luta de morte que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranqüilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a prêsa lhe escapasse, desaparecera; estava satisfeito.
Assim, êstes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.
O tigre deste vez não se demorou; apenas se achou a quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortado pelo raio.
Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas  patas de trás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos para cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que viram brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.
Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.
Como a princípio, o índio tinha dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais, e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.
Então o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote: fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa no chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.
Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sôbre a forquilha, mantinha assim  imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.
Quando o animal, quase esfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou um corda de "ticum" que tinha enrolada à cintura em muita voltas.
Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.
Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro bravo, que tornou côva, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que a prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.
José de Alencar ( José Martiniano de Alencar) - O GUARANI
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Pesquisa e postagem
Nicéas Romeo Zanchett
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domingo, 10 de abril de 2011

MENINO DE APARTAMENTO VISITA UMA CASA - Raquel de Queirós





   MENINO DE APARTAMENTO VISITA UMA CASA - Raquel de Queirós
Amanheceu aberta uma rosa, uma rosa grande e rubra, na roseira do meu jardim. Modesto jardim à moda antiga, um pedaço de grama, um pé de manacá, um coqueiro-anão, um jasmim-do-cabo, algumas roseiras. Nem jardim propriamente é. Mas para o meninozinho que nasceu num decimo-primeiro andar, que tem pai comerciário e mãe oficial-administrativo - para aquele garoto o meu jardim é um parque, um reino.  Ele mal  foi saltando do carro, juntou as mãozinhas e disse que lá estava um balãozinho de papel encarnado em cima daquela planta. A mãe, que tem habitos pedagógicos, logo explicou que aquilo era uma rosa numa roseira. O menino entretanto nãoconcordou, disse que só se era então um "balão de roseira". E quando insistiram que se tratava de uma flor, o rapaz perdeu apaciência: "Flor é pequenininho, e só dá na feira". Nativo da zona sul, é natural que pense que as flores e os legumes nascem nas bancas. 
Depois entrou em casa: entrou e parece que não gostou ou não entendeu. Foi perguntando onde é que ficava o elevador. E sabendo  que não havia elevador, indagou como é que  se ia para cima. Nós explicamos que não havia  lá em cima. Ele ficou completamente perplexo e quis saber onde é que o povo morava. E não acreditou direito quando lhe afirmamos que não havia mais povo, só nós. Calou-se, percorreu o resto da casa e as dependências; se aprovou, não disse. Mas, à porta da sala de jantar, inesperadamente, deu com o quintal. Perguntos se era o Rssel. Perguntou se tinha escorrega, se tinha gangorra. Perguntou onde é que estavam "os outros meninos". Claro que achava singular e, até, meio supeito aquela porção de terra e ávores sem ninguém dentro.
Todas essas observações, fê-las ainda do degrau da sala. Afinal, estirou tentativamente a ponta do pé, tateou o chão, resolveu explorar aquela floresta virgem. 
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De "100 Crônicas Escolhidas" de Raquel de Queirós. 
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Pesquisa e postagem > Nicéas Romeo Zanchett
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MEU PAI - De Graciliano Ramos





                                         MEU PAI - Graciliano Ramos 
Espanto,e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento.  Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando  energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares:  as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humilde, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia.  Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de amaro havia numerosos buracose remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas comparadas à chita de sinha Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos estazavam, suavam, prediam arame farpado nas estacas. Meu pai vigiava-os exigia que se mexessem, desta ou daquela forma, e nunca esva satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente, essa birra tornava-se razoável e vantajosa: curvara espinhaços, retesara músculos, cavara na piçarra e na argila o açude que se cobria de patos, mergulhões e flores de baronesa. Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente podroso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal, num gibão roto sobre a camisa curta...
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Graciliano Ramos - Infância. 
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Pesquiza e postagem > Nicéas Romeo Zanchett 
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SINHÁ - LINDA - de Guimarães Rosa





                                          SINHA - LINDA - Guimarães Rosa
E então Lélio via, na rua, o Assis Tropeiro conversando com o pai da Moça. E viu a Moça. Naquele momento, o que ele sentiu foi quase diferente de sua vida toda. A modo precisasse de repente de se ser no pino de bonito, de forçoso, de rico, grande demais em vantagens, mais do que homem, da ponta do bico da bota até o tope do chapéu.  Tinha vexame de tudo o que era e do que não era. Ave, na vivice do rosto daquela Mocinha, nos movimentos espertos de seu corpo, sucedia o resumo de uma lembrança sem paragens. Dava para em homem se estremecer mais uma ambição do que uma saudade. Ou, então, uma saudade gloriada, assim confusa. Se ela olhasse e mandasse, ele tinha asas, gostava de poder ir longe, até à distância do mundo, por ela estrepolir, fazer o que fosse, - guerrear, não voltar - essas ilusões. Ela tinha os cabelos quase acobreados, cortados curto, os pezinhos um pouquinho grandes. E nem o viu.  A tropa saia na manhã seguinte, por Paredão, depois do Lajeado. Num pronto, Lélio disse ao Assis Tropeiro uma conversa de que podia ir junto, até à Novilha Brava, de onde se apartava e torava para o norte. Veio mesmo.
A moça, com o pai, o senhor Gabino, a mãe, dona Luísa, um irmão doutor e outros dois rapazes, que eram do Rio de Janeiro. Lélio estava ali para a ver, agarrar de ver, às penas que pudesse, sempre, sempre. Vê-la, e a ouvir, bastava. Primeiro dia, da ponta de trilhos vieram até ao Lajeado. - "Será que já é o sertão?" - ela queria saber. O sertão, igual ao Gerais, dobra sempre mais para diante, territórios. - "Mas já é o Sertão, sim!" - ela queria e exclamava:  - "Tanto sol, tanta luz! Este céu é o da Itália..." Ela montava vestida de homem, como um menino. Às vezes dizia engraçadas palavras, se divertia a rodo, com os rapazes. Segundo dia, o trecho era do Lajeado ao Capão-do-Barreiro, onde tem uma vereda grande, com o buritizal, com uma lagoa. Sendo o mês de setembro, o buriti floroso - os altos cachos amarelos de ouro. - "O buriti é a palmeira de Deus!" - ela disse, disse. Lélio se lembrava dos gestos de sua mãe, e, como esses vaqueiros do Alto Urucuia, relatava coisas ao cavalo.  Mas se contentava, sem pensamento, perto de tudo. Ela estava com um plastro branco na ponta de um dedo, machucado em qualquer parte.  Seu nome era que lindo por lindo, qual retinia. No que não havia risco de ninguém ver, pois já estavam de saia, ele o escreveu, porção de vezes, nas costas das folhas das piteiras. Mas ao cavalinho pampa os nomes que dela disse foram outros: Minha-Menina, a Mocinhazinha, Sinhá-Linda... E vinham na terceira etapa - do Capão-do-Barreiro ao Paredão - lá iam demorar o inteiro de um dia, por descanso e porque a Moça queria encontrar coisas de vista. Ela era elegante sem querer, parece que nem sabiá que era.  Perguntou a Lélio o nome de um passarinho: era uma maria-tola do cerrado, ele não considerou decente responder uma bobagem dessa, achou melhor dizer que não sabia. Porque não tinha sido um sabiá ou um sofrê;  mesmo o quem-quem - que em toda baixada de campo limpo navegava, aos pares, pulando atrás dos bois? Os olhos dela rebrilhavam, reproduzindo folha de faca nova. O olhar, o riso, semelhavam a itaberaba das encostas pontilhadas de malacacheta, ao comprido sol.  Como podia se guardar tanto poder numa criaturinha tão mindinha de corpo?  Aí Lélio não queria alçar o galho, nem dar-se em espetáculo; mas carecia, necessitava de serví-la, de oferecer-lhe alguma coisa. Como viu que ela deseja sempre provar das comidas e bebidas sertanejas - achara choco o chá de congonha, mas aparecia muito  o de cagaiteira, que é dourado lindo e delicado e tem os suaves perfumes. No Porto-do-Cavalo, ele pensou  o projeto, mal pôde dormir. Acordou antes do dia, montou e galopou meia-légua, até onde estavam dizendo que se conseguia achar um doce de buriti, bom especial.  Comprou, mesmo com a tigela grande - não queria vender aquela tigela, bonita, pintada com avoejos verdes e  roxas flores. Trouxe, deu a ela, receoso, labasco, sem nenhuma palavra podida.  Ela riu, provou e sacudiu a cabecinha: disse aos rapazes que era um doce groceiro, ruim.  Nem olhara mais para Lélio. Mas ele ouviu, desriu em cara suja, e coube em si pelo resto do dia. Porém, no seguinte, na fazenda da Extrema, à tarde, por uma acaso ele pôde ver seus pezinhos, que ela lavava, à beira de água corrente. Demorou agudo os olhos, no susto de um roubado momento, e era como se os tivesse beijado: nunca antes soubera que pudesse haver uns pezinhos assim, bonitos alvos e rosados, aquela visão jamais esqueceria. Custou assentar cabeça. Modo outro não foram todos aqueles dias, que mudavam o estranho de sua vida, e eram dias desigualados, no rio rodante do mundo, da ponta das manhãs até ao subir extenso das noites, com o milmilhar de estrelas do sertão.  E força foi que enfim ela apartasse e se despedisse, no partirem do pouso na Fazenda da Novilha  Brava, depois do Ribeirão do Gado Bravo, que então ele devia beiradear, rumo das nascentes.  Até que se alegrava, nem sabia exato porque, na hora de pedir adeus. Talvez pela importância de ter de ser então notado, de poder dirigir-se altamente a ela, ele risonho e perturbado, em seu cavalo de duas cores. Tanto ela sorriu, estendeu-lhe a mãozinha abreviadamente, nem macia, perguntando-lhe mesmo por que não persistia junto, até ao Paracatu. Ah, sentia, não podia... - ele produziu de responder. Nem tudo  podia ser como nós queremos... Mas já ela se afastava, o amesquinhando, de certo, gracejava com um dos rapazes, por último que falou ainda se ouvia: - "...Mesmo porque, ora essa!..."
Um vivido. O resto era o que-ha-de-vir. Lélio não se entristecia, sabia que nunca mais havia de encontrá-la, mas tudo de começo tinha sido mesmo sem nenhuma esperança pequena, ele não era louco, o fogo é que corre com os pés para cima.  Mas também não atinava com maneira de verdade para a esquecer,  por mais difícil do que matar uma palmeira ouricuri - que até cortada e caída no chão reenraíza: guarda sua água no profundo. Pensar nela dava a sobre-coragem, um gole de poder de futuro. 
Mesmo agora, descido no comum da vida, querendo outras mulheres, de carinhos fortes; mas, depois, um instante, primeiro de dormir, pensava nela, ao acautelado, ao leve. Pensava nela, assim só como se estivesse rezando. 
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De João Guimarães Rosa.  Corpo de Baile. 
Pesquiza e postagem > Nicéas Romeo Zanchett 
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NA VARANDA - Machado de Assis





                                    NA VARANDA - Machado de Assis 
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias: 
"Sempre jutos..."
"Em segredinhos..."
"Se eles pegam de namôro..."
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha,  em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo nôvo, que me envolvia em mil mesmo, e logo me dispensava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes, dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas: 
"Em segredinhos..."
"Sempre jutos..."
"Se eles pegam de namoro..."
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício,  nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião. 
Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para ocolégio, eram tudo  travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e  no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu retorqui chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançavamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muitas vezes não passavam de simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe  que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga. 
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam  essas e outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem supeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com opensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também. 
Tudo isso me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna  Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam , desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar omundo.
Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira. 

De  Machado de Assis  - Em Dom Casmurro. 
Postado por Nicéas Romeo Zanchett 
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sexta-feira, 8 de abril de 2011

DECLARAÇÃO - Manuel Antonio de Almeida





                                   DECLARAÇÃO  -  Manuel Antonio de Almeida
Devia começar, como o sabe de cor e salteado  a maioria dos leitores, que é sem dúvida nenhuma muito entendida na matéria, por uma declaração em forma. 
Mas em amor, assim como em tudo, a primeira saída é o mais difícil. Tôdas as vezes que esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz, passava-lhe uma nuvem escura por diante dos olhos e  banhava-se o corpo em suor. Muitas semanas levou a compor, a estudar o que havia  de dizer a Luizinha quando aparecesse o momento decisivo. Achava com facilidade milhares de idéias brilhantes: porém, mal tinha assentado em que diria isto ou aquilo, já isto e aquilo não lhe parecia bom. Por várias vezes, tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa, pois estivera a sós com Luizinha; porém, nessas ocasiões, nada havia que pudesse vencer o tremor nas próprias pernas que se apoderava dele, e que não lhe permitia levantar-se do lugar onde estava, e um engasgo que lhe sobrevinha, e que o impedia de articular uma só palavra. Enfim, depois de muitas lutas consigo mesmo para vencer o acanhamento, tomou um dia a resolução de acabar com o mêdo, dizer-lhe a primeira coisa que lhe viesse à boca. 
Luizinha estava no vão de uma janela a espiar para a rua pela rótula: Leonardo aproximou-se tremendo, pé ante pé, parou e ficou imóvel como uma estátua atrás dela que, entretida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo tempo  calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se. Depois fez um movimento como se quizesse tocar no ombro de Luizinha, mas retirou depressa a mão. Pareceu-lhe que por aí não ia bem; quis antes puxar-lhe pelo vestido, e ia já levantando a mão quando também se arrependeu. Durante todos estes movimentos o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo da dificuldade.
Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e tomado de terror por se ver apanhado naquela posição, deu repentinamente dois passos para trás, e soltou um - ah!" -muito engasgado. Luizinha, voltando-se deu com ele diante de si, e recuando espremeu-se  de costas contra a rótula: veio-lhe também outro - ah! -porém não lhe passou da garganta e conseguiu apenas fazer uma careta.
A bulha dos passos cessou sem que ninguém chegasse à sala; os dois levaram algum tempo naquela mesma posição, até que Leonardo, por um supremo esforço, rompeu o silêncio, e com voz trêmula e em tom o mais sem graça que se possa imaginar perguntou desenxabidamente: 
- A senhora... sabe... uma coisa?
E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.
Luizinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:
- Então... a senhora...sabe ou...não sabe? 
E tornou a rir-se do mesmo modo. Luizinha consevou-se muda. 
- A senhora bem sabe... é porque não quer dizer...
Nada de resposta. 
- Se a senhora não ficasse zangada... eu dizia...
Silêncio. 
- Está bom...eu digo sempre... mas a senhora fica ou não fica zangada? 
Luizinha fez um gesto de quem estava impacientada. 
- Pois então eu digo... a senhora não sabe... eu... eu lhe quero... muito bem...
Luizianha fez-se cor de cereja; e fazendo meia volta à direita, foi dando as costas ao Leonardo e caminhando pelo corredor.  Era tempo, pois alguém se aproximava. 
Leonardo viu-a ir-se, um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera, porém, não de todo descontente: seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar não tinha sido totalmente desagradável a Luizinha. 
Quando ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se achava tão fatigado com se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante.
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De Manuel Antônio de Alméida -  Memórias de um Sargento de Milícias. 
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Postado por Nicéas Romeo Zanchett
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DOR DE DENTE - Mário de Andrade





                               DOR DE DENTE - Mário de Andrade 
Em frente de Sousa Costa, a pretinha Marina, imóvel, se agarra com as duas mãos no banco, estarrecida, boca aberta, olhos esbugalhados, gozando. Como tinham ido ao Rio pelo noturno, esta era realmente a primeira vez que enfim Marina viajava de trem, a sua maior aspiração.  Automóvel, jamais a interessara, era canja, não tinha apito. Mesmo para ir da casinha dela, na chegada de Jundiaí, para a vila Laura, foram buscá-la na Fiat, não tinha apito.
E nos seus quatorze anos, Marina guardava aquele desejo eterno com que, todos os dias de sua já longa vida, espiava os trens, trepava no barranco, os trens sublimes passando. A casa do pai dela, carapina em Jundiaí, era justo numa curva de apitar, e o apito nascera dentro dela como a suprema expressão da dignidade dos veículos. 
Só uma coisa Marina ainda achava superior ao trem: ter dor  de dente. Chegara a rezar a Deus pedinho que lhe mandasse uma dor de dente, nem que fosse uma dorzinha só, bem pequenina, porque achava muito lindoa gente andar com um lenço vermelho amarrado na cara. Achava lindíssimo. No tempo em que morava com a família, chegava a chorar de escondido, porque o Dito andava sempre de lenço amarrado na cara, maravilhoso, já todo banguela de tanto dentearrancado com dor.  E ela com aquela dentadura branca, alvinha, sem uma dor.... Chorava.

De Mário de Andrade -  Amar, Verbo Intransitivo. 
Postado por Nicéas Romeo Zanchett 

domingo, 3 de abril de 2011

ONIPRESENÇA - Armando Nogueira





                                                    ONIPRESENÇA 
A imprensa uruguaia passara a semana inteira a falar do grande jogo, destilando otimismo. Fazia uma única adverttência: que o Peñarol tivesse cuidado com Pelé, que o marcasse de perto - e aí estaria a fórmula da vitória certa.  Em Buenus Aires, entre duas bombas e uma greve dos quarteirões de Nuñez, os jornais exaltavam a escola do Rio da Prata, destacando, contudo, que era preciso ter todas as atenções concentradas em Pelé. Uma vez bem marcado, Pelé estaria sem condições para golear e, certamente, ganharia o Peñarol.
No hotel, em Buenus Aires, antes de tomar o ônibus para o estádio do River Plate, o técnico Bela Gutman recomendou: cerquem o Pelé e ganharemos. No vestiário, quase à hora de entrar em campo, o time do Peñarol foi convocado a um canto pelo técnico Bela Gutman: 
-Você, zagueiro-direito, só tem uma tarefa, hoje: marque o Pelé naquelas entradas  dele pela meia esquerda. A cobertura será feita pelo zagueiro-interior-esquerdo. O esquema é infalível.
Adiante, Bela Gutman chamou o zagueiro-interior-esquerdo: " Você hoje só precisa fazer uma coisa: marque o Pelé naquelas entradas pela meia direita. A cobertura é do zagueiro-direito. 
O zagueiro-direito, por sua vez, será coberto pelo lateral toda vez que Pelé entrar pela meia."  
Bela Gutman chamou o goleiro: "Você fica de olho nas bolas pingadas na pequena érea: cuidado com Pelé que é perigoso nas cabeçadas. Com outros, não precisa se preocupar; bloqueie sempre os saltos do Pelé.  
Chamou, por fim, os dois apoiadores e pediu que ajudassem os quatro zagueiros na missão um tanto incômoda, reconhecia, de marcar Pelé. Incômoda, mas não impossível. Afinal de contas, Pelé não tem nada de super-homem. Basta marcá-lo com cuidado, com rigor, mobilizando as melhores energias de time que ele ficará imobilizado. 
Tudoperfeito, tudo asentado, o Exército Argentino conjugado ao Exército Uruguaio, com a cobertura da Marinha e da Aviação. Jogo lançado, Pelé marcado, Pelé marcadíssimo, Pelé ultramarcado, Pelé cercado, Pelé agarrado, Pelé derrubado, Pelé sufocado. 
Bola na área, gol de Pelé. 
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De Armando Nogueira - Na Grande Área. 
Armando Nogueira, jornalista e cronista esportivo, nasceu em Xapuri em 14 de janeiro de 1927 e faleceu no Rio de Janeiro em 29 de março de 2010. A ele minha homenagem. 
Nicéas Romeo Zanchett

LAVADEIRAS - Aluisio Azevedo





                                                       LAVADEIRAS 
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. 
Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia: 
"Estlagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras."
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia: tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis, sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar.  
Graças à abundância de água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los. 
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de vara, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura  das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. 
E naquela terra encharcada  e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. 
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De "O CORTIÇO" - dfe Aluísio Azevedo. 
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Post.: Nicéas Romeo Zanchett





O ANJO DA NOITE - Cecília Meireles





                                                   O ANJO DA NOITE 
O guarda noturno caminha com delicadeza, para não assustar, para não acordar ninguém. 
Lá vão seus passos vagarosos, cadenciados,cosendo a sua sombra com a pedra da calçada.
Vagos rumores de bondes, de ônibus, os últimos veículos, já sonolentos, que vão e voltam quase vazios. O guarda noturno, que passa rente às casas, pode ouvir ainda a música de algum rádio, o choro de alguma criança, um resto de conversa, alguma risada. Mas vai andando. A noite é serena, a rua está em paz, o luar pôe uma névoa azulada nos jardins, nos terraços, nas fachadas: o guarda-noturno para e contempla.
À noite, o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Mesmo os doentes parece que são mais felizes: esperam dormir um pouco à suavidade da sombra e do silêncio. Há muitos sonhos em cada casa. É bom ter uma casa, dormir, sonhar. O gato retardatário que volta apressado, com certo ar de culpa, num pulo exato galga o muro e desaparece; ele também tem o seu cantinho para descansar. O mundo podia ser tranqüilo. As criaturas podiam ser amáveis. No entanto, ele mesmo, o guarda-noturno, traz um bom revolver no bolso, para defender uma rua...
E se um pequeno rumor chega ao seu ouvido e um vulto parece apontar da esquina, o guarda-noturno torna a trilhar longamente, como quem vai soprando um longo colar de contas de vidro. E recomeça a andar, passo a passo, firme e cauteloso, dissipando ladrões e fantasmas. É a hora muito profunda em que os insetos do jardim estão completamente extasiados, ao perfume da gardênia e à brancura da lua.  E as pessoas adormecidas sentem, dentro de seus sonhos, que o guarda-noturno está tomando conta da noite, a vagar pelas ruas, anjo sem asas, porém armado. 
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Quadrante 2 , de Cecília Meireles. 
Post: Nicéas Romeo Zanchett


UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA - Monteiro Lobato





                                   UM BOMEM DE CONSCIÊNCIA - Monteiro Lobato 
Chama-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João teodoro. 
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. 
Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca. 
- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Ja teve três médicos bem bons - agora só um e bem ruinzote. Ja teve seis advogados e hoje mal dá serviço para rábula ordinário como Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda.  Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...
João teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível. 
- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca  não vale mais nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui. 
Um dia conteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crâneo. Delegado, ele! Ele  que não era nada, nunca fora nada, não queria nada, não se julgava capaz de nada...
Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai á capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca... 
João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as  num burro, montou seu cavalinho magro e partiu. 
Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador. 
- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
 - Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim. 
- Mas, como ? Agora que você está delegado? 
- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus. 
E sumiu. 

 Conto de Cidades Mortas, Monteiro lobato.
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Post. Niceas Romeo Zanchett

sábado, 2 de abril de 2011

A MENINA DO LEITE



                                           A MENINA DO LEITE
Laurinha, no seu vestido novo de pintas vermelhas, chinelos de bezerro, treque,treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de leite à cabeça - o primeiro leite da sua vaquinha mocha. Ia contente, rindo-se e falando sozinha. 
- Vendo o leite - dizia, e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintinhos. Morrem...dois, que sejam, e crescem dez - cinco frangas e cinco frangos. Vendo os frangos e crio as frangas, que crescem e viram ótimas botadeiras de duzentos ovos por ano cada uma. Cinco: mil ovos! Choco tudo e lá me vêm quinhentos galos e mais outro tanto de galinhas. Vendo os galos. A dois cruzeiros cada  um - duas vezes cinco, dez... - mil cruzeiros... Posso então comprar doze porcas de cria e mais uma cabrita. As porcas dão-me, cada uma, seis leitões. Seis vezes doze...
Estava a menina neste ponto quando tropeçou, perdeu o equilíbrio e, com a lata e tudo, caiu um grande tombo no chão. 
Pobre Laurinha! 
Ergueu-se chorosa, com um ardor de esfoladura no joelho; e enquanto espanejava as roupas sujas de pó viu sumir-se, embebido pela terra seca, o  primeiro leite da sua vaquinha mocha e com ele os doze ovos, as cinco botadeiras, os quinhentos galos, as doze porcas de cria e a cabritinha - todos os belos sonhos da sua ardente imaginação... 
  Fábulas, Monteiro Lobato
Post. 
Nicéas Romeo Zanchett 
AS FÁBULAS DE ESOPO

OFÍCIOS

                                                       OFÍCIOS
 - Comigo perdem o tempo. Meu oficio é malhar ferro.
Manuel pensou no seu ofício de cortar madeira, comparou os dois materiais. A diferença teria algum efeito na resistência das pesoas que lidam com um e outro? Bobagem. Pau é pau, ferro é ferro; e gente é gente. Um homem vai ser ferreiro, ou carpinteiro ou sapateiro é por acaso, como aconteceu com ele Manuel. O pai era carpinteiro, ele teve também de aprender o ofício, para ajudar; não podia ficar o tempo todo zanzando sem ocupação. Vai ver que com Apolinário aconteceu do mesmo jeito. Mas será que não entra a força da vocação? Muitos rapazes quiseram aprender carpintagem com ele, mexeram, viraram, largaram, não aprendiam nem pegar as ferramentas. 
E será também que o costume de lidar sempre com o mesmo material entra ano sai ano não vai influindo na alma da pessoa, contagiando moleza ou dureza? Reparando bem, parece que cada um vai apanhando cara do ofício que desempenha. 
Pensando nisso, ele olhou para Apolinário. A cara cheia, quadrada, de carne dura, parece que posta em pedacinhos, acalcados à força; a testa larga, com um caroço de cada lado, como inchaços encravados; o nariz grande bem enterrado na cara, os olhos pequenos para não gastar muito espaço; o queixo largo, de ponta entortada para frente; o pescoço quase da grossura da cabeça. Essa cara de Aplinário não poderia nunca ser cara de latoeiro, por exemplo. Latoeiro era João José, miudinho, ratinho, ombros estreitos de menino, mãos miúdas, não precisavam ser grandes para cortar folha, coisa tão mole. João José, enroladinho, lustroso, resmungão, de vez em quando se rebolando e arranhando os que lidam com ele. 
E ele, Manuel? Mole como madeira no ferro? Às vezes querendo fingir dureza, inventando nós que a ferramenta não respeita, passa por cima e iguala? As mãos do carpinteiro, o corpo, a alma do carpinteiro não podem ser mais brutos do que a madeira. Em madeira não se trabalha batendo com força, com raiva; só lenheiro faz isso, mas lenheiro é quase igual ao machado que ele levanta e abaixa sem dó, sem consideração; basta olhar a cara de um lenheiro para se ver que ele não tem delicadeza nem tato: não precisa. 
Ferreiro também trabalha batendo, pondo força. Mas tem  uma diferença: ele tem uma medida a encher, um ponto a chegar,  uma idéia a seguir; não bate para cortar nem rachar, bate para achatar, arredondar, conformar. Ferreiro trabalha fazendo, não desmanchando; e se desmancha é para fazer  de outro jeito. Na brutalidade do ferreiro tem uma delicadeza escondida.
Jose J. Veiga - A hora dos Ruminantes
Post. 
Nicéas Romeo Zanchett