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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

OS SERTÕES - de Ecuclides da Cunha



Euclides da Cunha ocupa um destacado lugar na literatura brasileira graças ao seu talento especial na manipulação dos esquemas da nossa língua. Fundindo a tradição e a mudança, com todo o brilhantismo de sua imaginação, tornou-se o grande estilista de nossa literatura. 
Em todos os seus trabalhos fica evidenciado seu estilo objetivo, nervoso e  despojado. Suas frases são compostas com marcantes palavras em que se mesclam, numa tensão dialética constante, a sua postura sociológica e literária, que resulta na qualidade superior só alcançada por  quem escreve com paixão.  
O flagelo das secas nordestinas, que sempre resulta em paixões místicas, não fora compreendido e resultou na matança dos sertanejos que, seguindo seu líder e sua fé, não se renderam ao avassalador poder do governo opressor. 
Euclides da Cunha, utilizando de uma linguagem cuidada e orientada segundo os mesmos padrões parnasianos de vernaculidade,  relata em detalhes o massacre que sempre será uma vergonha nacional manchada com o sangue dos nossos irmãos indefesos.
Os Sertões foram fruto de uma série de reportagens escritas para o jornal "O Estado de São Paulo" no término da Campanha de Canudos - Bahia, em 1897.
A primeira publicação da obra ocorreu no Rio de Janeiro em 1902. Divide-se em três partes: A Terra, O Homem, e A Luta. 
A primeira tem como conteúdo um apanhado geral da região das secas e de suas causas, segundo pensamento da época. 
A segunda, baseia-se na ideia do condicionamento do meio e da herança, onde se estuda o gênese do jagunço e, principalmente do líder Antônio Conselheiro, chefe carismático de uma multidão de fanáticos reunida em Canudos. 
Na terceira parte, narram-e os sucessivos combates que levaram ao extermínio dos jagunços pelas tropas federais. 
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OS SERTÕES 
Por Euclides da Cunha 
O trecho, aqui apresentado, pertence à segunda parte, e subtitula-se "A Seca" e "Insulamento no Deserto". 
Relata o imenso sofrimento do sertanejo para permanecer na terra que tanto ama. 
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                   De repente, uma variante trágica. 
                   Aproxima-se a seca. 
                   O sertanejo advinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular  com que se desencadeia o flagelo. 
                    Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará. 
Vaqueiro Nordestino

                    Mas o nosso sertanejo não foge. A seca não o apavora. É um complemento á sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estoico  Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças  de uma resistência impossível. 
                    Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício  de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo  arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas. 
                    Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas: atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens... 
                    Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as "chuvas do caju" em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores mascescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; a abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os das, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida em que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve -lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte a armadura de couro, sem mais flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...
                     É o prelúdio da sua desgraça. 
                     Vê-o acentuar-se, num crescendo, até dezembro. 
                     Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência. 
                     É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expões ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo. 
                    Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d'água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menos probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
                     Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios.  Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último. 
                      Aquele dia é para ele o índice dos meses subsequentes  Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário o sol atravessa abrasadamente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças. 
                      A seca é inevitável. 
                     Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores.  Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas.  Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa.  Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, decampados em fora, famílias inteiras - não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos  de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes.  Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios  e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos "farejando água"; - e sem que se lhe amorteça a crença,sem duvidar da Providência que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício.  Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes: outras, apos enormes fadigas, esbarra em uma lage que lhe anula todo o esforço despendido;  e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se, ou sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo.  Volve por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo. 
                    Ali esta, em torno, a catinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo  adstringente dos cladódios do "chique-chique", que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos, - forte e carinhoso - defendendo-se e estendendo a prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana. 
                     Baldam-se-lhe, porém, os esforços. 
                     A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando com a fuga das seriemas, que migram para outros "tabuleiros", e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a "magrém", abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas. 
                     À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. 
                    É mais um inimigo a suplantar.
                    Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima da fumaça", é invencível.
                   O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe. 
                   Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita - a hemeralopia.  Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mal o sol se esconde no poente a vítima nada vê. Está cega. A noite afoga-a de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa. 
                   Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras. 
                   Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só de olhar o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mas soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro. 
                   E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
                   Trançaram-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca de último repasto... 
                    Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidades sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepidante das caatingas e o sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de revezes, dobra-se afinal. 
                    Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo diante de uma nuvem de poeira, na curva do caminho... 
Retirantes Nordestinos 
No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia. 
                  Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida. 
O desânimo 
                     Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o a saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdida e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demoradas. 


BREVE BIOGRAFIA
              Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro, a 20 de janeiro de 1866. Terminando o curso secundário, matricula-se na Escola Politécnica, mas é obrigado, por motivos financeiros, a transferir-se para a Escola Militar (1884), de onde sai tenente e engenheiro, após uma interrupção provocada por suas ideias liberais. 
               Dedicando-se à Engenharia e ao jornalismo, nessa atividade segue para Canudos em 1896, como correspondente de "O Estado de São Paulo". No regresso vai para São José do Rio Pardo, a fim de construir uma ponte, e lá escreve  Os Sertões, cuja publicação, em 1902, lhe trouxe imediata notoriedade. Ingressa na Academia Brasileira de Letras e no Itamarati, e mais tarde torna-se professor de Lógica no Colégio Pedro II (1909). 
               Morreu assassinado a 15 de agosto de 1909. Deixou, além de "Os Sertões": "Peru versus Bolívia" (1907), "Contrastes e Confrontos" (1907), "À Margem da História" (1909), "Canudos, diário de uma expedição" só publicado em 1939. 
               Nicéas Romeo Zanchett 
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