Minha lista de blogs

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

OS SERTÕES - de Ecuclides da Cunha



Euclides da Cunha ocupa um destacado lugar na literatura brasileira graças ao seu talento especial na manipulação dos esquemas da nossa língua. Fundindo a tradição e a mudança, com todo o brilhantismo de sua imaginação, tornou-se o grande estilista de nossa literatura. 
Em todos os seus trabalhos fica evidenciado seu estilo objetivo, nervoso e  despojado. Suas frases são compostas com marcantes palavras em que se mesclam, numa tensão dialética constante, a sua postura sociológica e literária, que resulta na qualidade superior só alcançada por  quem escreve com paixão.  
O flagelo das secas nordestinas, que sempre resulta em paixões místicas, não fora compreendido e resultou na matança dos sertanejos que, seguindo seu líder e sua fé, não se renderam ao avassalador poder do governo opressor. 
Euclides da Cunha, utilizando de uma linguagem cuidada e orientada segundo os mesmos padrões parnasianos de vernaculidade,  relata em detalhes o massacre que sempre será uma vergonha nacional manchada com o sangue dos nossos irmãos indefesos.
Os Sertões foram fruto de uma série de reportagens escritas para o jornal "O Estado de São Paulo" no término da Campanha de Canudos - Bahia, em 1897.
A primeira publicação da obra ocorreu no Rio de Janeiro em 1902. Divide-se em três partes: A Terra, O Homem, e A Luta. 
A primeira tem como conteúdo um apanhado geral da região das secas e de suas causas, segundo pensamento da época. 
A segunda, baseia-se na ideia do condicionamento do meio e da herança, onde se estuda o gênese do jagunço e, principalmente do líder Antônio Conselheiro, chefe carismático de uma multidão de fanáticos reunida em Canudos. 
Na terceira parte, narram-e os sucessivos combates que levaram ao extermínio dos jagunços pelas tropas federais. 
.

OS SERTÕES 
Por Euclides da Cunha 
O trecho, aqui apresentado, pertence à segunda parte, e subtitula-se "A Seca" e "Insulamento no Deserto". 
Relata o imenso sofrimento do sertanejo para permanecer na terra que tanto ama. 
.
                   De repente, uma variante trágica. 
                   Aproxima-se a seca. 
                   O sertanejo advinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular  com que se desencadeia o flagelo. 
                    Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará. 
Vaqueiro Nordestino

                    Mas o nosso sertanejo não foge. A seca não o apavora. É um complemento á sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estoico  Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças  de uma resistência impossível. 
                    Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício  de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo  arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas. 
                    Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas: atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens... 
                    Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as "chuvas do caju" em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores mascescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; a abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os das, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida em que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve -lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte a armadura de couro, sem mais flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...
                     É o prelúdio da sua desgraça. 
                     Vê-o acentuar-se, num crescendo, até dezembro. 
                     Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência. 
                     É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expões ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo. 
                    Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d'água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menos probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
                     Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios.  Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último. 
                      Aquele dia é para ele o índice dos meses subsequentes  Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário o sol atravessa abrasadamente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças. 
                      A seca é inevitável. 
                     Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores.  Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas.  Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa.  Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, decampados em fora, famílias inteiras - não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos  de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes.  Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios  e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos "farejando água"; - e sem que se lhe amorteça a crença,sem duvidar da Providência que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício.  Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes: outras, apos enormes fadigas, esbarra em uma lage que lhe anula todo o esforço despendido;  e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se, ou sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo.  Volve por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo. 
                    Ali esta, em torno, a catinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo  adstringente dos cladódios do "chique-chique", que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos, - forte e carinhoso - defendendo-se e estendendo a prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana. 
                     Baldam-se-lhe, porém, os esforços. 
                     A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando com a fuga das seriemas, que migram para outros "tabuleiros", e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a "magrém", abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas. 
                     À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. 
                    É mais um inimigo a suplantar.
                    Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima da fumaça", é invencível.
                   O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe. 
                   Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita - a hemeralopia.  Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mal o sol se esconde no poente a vítima nada vê. Está cega. A noite afoga-a de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa. 
                   Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras. 
                   Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só de olhar o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mas soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro. 
                   E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
                   Trançaram-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca de último repasto... 
                    Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidades sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepidante das caatingas e o sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de revezes, dobra-se afinal. 
                    Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo diante de uma nuvem de poeira, na curva do caminho... 
Retirantes Nordestinos 
No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia. 
                  Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida. 
O desânimo 
                     Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o a saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdida e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demoradas. 


BREVE BIOGRAFIA
              Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Cantagalo, Estado do Rio de Janeiro, a 20 de janeiro de 1866. Terminando o curso secundário, matricula-se na Escola Politécnica, mas é obrigado, por motivos financeiros, a transferir-se para a Escola Militar (1884), de onde sai tenente e engenheiro, após uma interrupção provocada por suas ideias liberais. 
               Dedicando-se à Engenharia e ao jornalismo, nessa atividade segue para Canudos em 1896, como correspondente de "O Estado de São Paulo". No regresso vai para São José do Rio Pardo, a fim de construir uma ponte, e lá escreve  Os Sertões, cuja publicação, em 1902, lhe trouxe imediata notoriedade. Ingressa na Academia Brasileira de Letras e no Itamarati, e mais tarde torna-se professor de Lógica no Colégio Pedro II (1909). 
               Morreu assassinado a 15 de agosto de 1909. Deixou, além de "Os Sertões": "Peru versus Bolívia" (1907), "Contrastes e Confrontos" (1907), "À Margem da História" (1909), "Canudos, diário de uma expedição" só publicado em 1939. 
               Nicéas Romeo Zanchett 
.


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

CARAMURU - Por Santa Rita Durão


CARAMURU
Por Fr. José de Santa Rita Durão 

O NOSSO POEMA NACIONAL 
No seu poema épico Caramuru, teve anta Rida Durão um bem definido propósito patriótico. Este livro é a época do descobrimento do Brasil; a história do país é objeto no poema de três longas narrativas episódicas diversas, e o teatro da ação é o Recôncavo, por assim dizer, o berço da nacionalidade que ia aqui nascer e desenvolver-se.
Foi orquestrado pelo nosso grande Maestro Carlos Gomes. 
Nicéas Romeo Zanchett 
               Ia ele de Portugal para o Brasil, quando uma tremenda tempestade acomete o navio e o faz dar à costa. Muitos cadáveres são arrojados pelas ondas à praia, onde os ferozes indígenas os devoravam. Sete, apenas, escaparam com vida, vindo do navio a nado até à terra. A estes poupam os horrendos selvagens, nus, de pele avermelhada untada de resinas, com as orelhas, nariz e boca furados, de onde pendem grosseiros enfeites, e com os lábios ainda vermelhos do sangue das suas vítimas recentes. 
               Mas se os poupam e os sustentam com cuidado, é apenas tendo em vista a sua engorda, a fim de mais delicioso e farto ser o banquete que preparam. 
               Enquanto dura o seu cativeiro, um dos náufragos, acompanhando-se numa viola que as ondas tinham trazido à pria ( juntamente com armas, munições e pólvora) canta, para recrear os companheiros. É nativo de uma ilha do Atlântico e poeta; e canta a história do bom selvagem americano que escutou a palavra de um missionário e morreu com cheiro de santidade, sendo o seu corpo levado numa nuvem para a ilha do Corvo, onde foi colocado no cimo de um alto pico, transformando-se aliem estátua que ficou apontando para o Brasil, a fim de que os europeus, obedecendo ao seu gesto, se encaminhassem para o Novo Mundo e ali espalhassem a salvadora doutrina de Cristo. 
                Enquanto os cativos escutavam  estes cantores, Diogo, que entre eles se encontrava, contou-lhes o pressentimento que tinha de que brevemente a sua triste vida findaria na horrenda festa dos selvagens. E aconselhou-os a que afastassem seus pensamentos de cuidados terrenos, e, pedindo a Deus perdão de suas culpas, lhe encomendassem as almas. 
                Iam adiantados os preparativos da sinistra festa, e em breve os canibais os viriam buscar à gruta onde faziam sua morada, exceto a Diogo, que deixaram ali ficar, porque estava muito magro e doente. Ataram seis a postes e já o carrasco se aproximava de um erguendo o maço para com ele lhe esmagar a cabeça, quando se ouviu espantoso trovão que a todos amedronta, ao mesmo tempo que uma turba inimiga faz chover dardos e pedras sobre os selvagens, fazendo mortos os que queriam matar. Era Sergipe, chefe da vizinha tribo que com eles andava em guerra, que assim, de surpresa, os acometia. Logo esse chefe manda soltar os cativos, a quem toma por escravos. Porém, não há deles mais memória, e presume-se que, vagueando pelas brenhas, teriam ali encontrado a morte, servindo de alimento às feras. 
II
                O sol já estava alto quando, ao dispersar daquela turba carniceira, Diogo se viu só na gruta, ocupado por mil pensamentos desencontrados e por mil terrores. Anima-se, porém, em breve, e o seu peito vagaroso resolve não morrer sem tentar defender-se. Doente e enfraquecido, pouco podia contar com as suas forças, mas entrando na caverna que lhe servi de habitação, ali se revestiu das suas armas e elmo, e cingiu a espada e pôs a espingarda ao ombro. 
                Saindo da gruta assim armado, viu a turba dos selvagens, que davam mostra de terem sido vencidos. Vendo Diego armado, recuaram espavoridos, julgando contemplar um ente sobrenatural. De bruços aos seus pés lhe cai o chefe Gupeva, sucumbindo de pavor. Aproveitando aquela disposição, Diego, servindo-se do pouco que que aprendera da língua durante o cativeiro, fez valer o terror que inspirava e, falando mansamente, lhes explica que serve um Deus onipotente, que é o Pai de  todos, e que detesta os sacrifícios humanos e proíbe os costumes canibais. Leva consigo o chefe Gupeva ao interior da gruta, e ai, servindo-se do fuzil, acende rápido a candeia, o que mai assombra e assusta os selvagens. Mostra-lhes as armas, as roupas, e uma imagem da Virgem que impressiona vivamente  Gupeva. 
                 Sai dali o chefe cheio de respeito e fala aos seus, repetindo-lhes as palavras do branco e ordenando que o venerem e o temam, porque é seu amigo e poderoso.  
                 No dia seguinte organiza-se uma grande caçada, e então Diego, pegando na espingarda, atira a uma ave que logo derruba. O efeito deste tiro é espantoso. Os selvagens caem por terra e estorcem-se de pavor, gritando: Caramuru! que significa filho do trovão. E, dai por diante, esta palavra fica sendo para eles o nome do herói.
                 Levam-no então para a sua taba ou aldeia, onde lhe fazem as honras da hospitalidade. Pouco depois tem Caramuru a oportunidade de ver a filha de um rei vizinho, que é branca, rosada e linda como um anjo. Logo lhe oferece a mão de esposo, apenas exigindo que ela se convertesse ao catolicismo.
                  A bela Paraguaçu passa a servir de interprete para as conversas entre Caramuru e Gupeva; e este conta ao branco a sua fé na imortalidade com tão acertadas e claras razões que deixam o herói admirado. 
                  Pelo meio da conversa vai sempre Diego falando do Deus verdadeiro e da sua santa doutrina e Gupeva conta-lhe como a tradição na sua gente tem observado as crenças antigas de um dilúvio universal de que só espantou Tamandaré e sua esposa, de quem descende toda a raça humana espalhada pelo mundo. 
                  Diz-lhe as leis do seu povo, como se pratica a lei de Talião e como os anhangás (demônios) tentam os homens  e os levam aos crimes; como existe um inferno horrendo para os maus em vales profundíssimos escondidos entre as montanhas que dividem o Brasil do Peru;  e que existe um paraíso além dessas montanhas, para os heróis e os justos. 
                  Termina Gupeva o seu discurso contando os milagres e pregões de São Thomé aos selvagens; sabem estes que ele era um enviado  de Deus que queria ensinar-lhes o caminho do céu, mas esqueceram a sua doutrina. 
                  Grande alarido interrompe o chefe nesta altura. É uma forte tribo inimiga que avança em pé de guerra. Recomenda Diego calma e prudência, e, disparando a espingarda, semeia terror na turba inimiga. 
IV
                   O invasor era um chefe errante, terror do sertão, chamado Jararaca que, tendo um dia avistado a linda Paraguaçu, desejava casar com ela. Pedira ao pai e este acedera ao eu pedido, mas Paraguaçu não dera seu consentimento. Despeitado e irritado com esta recusa, Jararaca jurava vingar-se. 
                   Para esse fim reuniu numerosos tribos de ferozes selvagens, de aspecto tão medonho que só vê-los causava espanto. Numerosos como as areias do mar,  ai vinham eles agora, com seus chefes desafiando com gritos que mais pareciam demônios. 
                  Disse-lhes Jararaca que Gupeva fizera aliança com o filho do trovão, e que diante dele tremera de medo e se humilhara, mas que ele, Jararaca, não tinha tais pavores, pois os raios do céu também matam alguns homens, mas não todos; e, declarando não ter medo algum de Caramuru, dizia que avançaria para ele sem tremer. 
                 Começa a batalha inaudita; com os invasores vinha um exército de mulheres guerreiras temíveis, comandadas pela afamada Guarapiranga, chamada de grã baleia; mas do lado de Gupeva um outro batalhão feminino, não menos terrível, era comandado por Paraguassú. 
                Já o sangue corre, já muitos guerreiros caem para não mais se levantarem, quando um aliado de Jararaca, lança sobre Diego um tigre amestrado para a guerra, que consigo trazia.
Uma detonação retumba nos ares; a fera cai; Diego, precipitando-se, corta-lhe a cabeça. O terror domina as ondas inimigas, que se rendem ou fogem. 
                Paraguassú faz maravilhas ao lado de Diego, valendo eles dois por todo um exército, tal é o seu valor e os fitos estupendos que praticam; porém a donzela arrojada, afastando-se de caramuru no ardor da peleja, é ferida e cai em poder dos inimigos. 
                De novo se acende a luta atroz em torno daquele troféu precioso.  Diego consegue por fim libertar a moça, e, tocando num tambor e disparando mais uma vez a espingarda, põe o inimigo em debandada e decide a sorte da batalha. Paraguassú, que desmaiara, volta a si e recompensa com um sorriso o seu libertador. 
                Mas Diego aponta a espingarda com mão e vista certa; espera a ocasião; o tiro parte; a bala atravessa a cabeça de Jararaca, que tomba como árvore derrubada. 
                Com a morte de Jararaca e o desbarato das canoas, a vitória é completa e definitiva. Todos os chefes inimigos se juntam e vem render-se a Diego, que por todos é eleito chefe supremo do sertão. 
                Tenta ele antão abolir o horrendo costume de banquete de carne humana; porém o costume e a gula são tamanhos que em tudo lhe obedecem seus vassalos, menos nisto. 
VI 
                 Vencida com espantosa vitória a grande batalha, de todos os pontos do sertão vieram chefes prestar homenagem a Caramuru e oferecer-lhe presentes.  Todos lhe traziam as filhas para ele tomar como esposa; e estas vendo Diego ficavam com ciúmes de Paraguassú, de quem desejavam a morte. A bela preferida, aborrecida de tantas e tantas contrariedades, estava ansiosa de partir com o seu noivo para a Europa. 
                Diego, preocupado com v´rios pensamentos, afastou-se um dia da taba e pelas margens do formoso e vasto rio de São Francisco se foi alongando. Procurando refúgio contra os raios do sol ardente, penetrou numa gruta ou lapa, onde ficou assombrado. Era uma vastíssima caverna cavada e trabalhada pela natureza e tinha a forma e a grandeza de um enorme templo cristão. Ali caiu Diego de joelhos, adorando o Senhor, pois em tal milagre reconheceu o sinal de que Deus não desamparava os selvagens e já se preparava para os juntar ao seu rebanho de fieis.
                Prosseguindo na sua viagem, teve Diego ocasião de salvar uns náufragos espanhóis que, vindos do Peru pelo largo do rio, demandavam novas terras. E, pouco depois, avistou uma nau francesa.  Nessa nau embarcou, levando consigo Paraguassú, com destino à Europa, pois estava cansado de tamanhas aventuras e desejoso de levar aos seus as novas terras que descobrira e dos povos que dominara. 
                Ao largar a nau, depois das despedidas, as moças que queriam casar com Diego lançaram-se no mar e a nado seguiam, chorando, o navio. Uma delas, chamada Moema, agarrada ao leme, rompia em queixas que cortavam o coração; e por fim fundou-se nas ondas, e as outras, a nado, desconsoladas retrocederam à praia.  (Este episódio de Moema é um dos mais belos de todo este maravilhoso poema épico).
                Navegava o navio com bonança, e o comandante francês,sentado á popa, ia perguntando muitas coisas a Diego, que respondendo-lhe, narrava sua descoberta do Brasil e a divisão do mundo que o Papa fizera entre portugueses e espanhóis. E descreveu-lhe as diferentes províncias brasileiras, cada qual com a sua formosura e riqueza espantosas. Narra também a chegada ao Brasil do grande Cabral, que logo na nova terra descoberta fez erguer o sagrado lenho e celebrar um ofício divino e que os nativo, ainda que não compreendendo a sua significação, assistiram com grande respeito. 
                Conta depois a história das suas espantosas aventuras e de como assim descobrira a Bahia e novas terras e povos. 
VII
                Foi no outono que chegou à França o navio que levava Diego e a gentil Paraguassú. Reinava então Henrique II, casado com Catarina de Médicis. 
                Paraguassú, ao ver os palácios, as torres, a casaria, os vestuários e todos os luxos e movimento da cidade importante e civilização que era Paris, ficou estupefata de admiração e só nos olhos se lhe conhecia vida, pois parecia ter perdido o entendimento. 
                Logo, em Paris, se espalhou a fama de tal chegada. Diziam que Diego era o rei do Brasil e Paraguassú a rainha, e de todos os pontos da cidade acudia o povo para vê-los. 
               Foram recebidos pelos reis no meio da sua suntuosa corte e ali Diego contou as suas aventuras e disse-lhe que Paraguassú, que o acompanhava,  era princesa ilustre da sua tribo e que desejava abraçar a fé de Cristo. 
                Catarina de Médicis ofereceu-se para ser madrinha de batismo, e três dias depois,com grande suntuosidade,  Paraguassú banhou-se na água benta de um dos maiores templos de Paris, recebendo de sua augusta madrinha o nome de Catarina Alves. Com esse nome ficou sendo chamada aquela a quem a Bahia reconhece como sua fundadora. 
                Seguiu-se à importante cerimônia do batismo um grande banquete no paço do rei; e depois os reis determinaram receber o casal em audiência privada. 
                Nessa ocasião Henrique II manifestou a Caramuru o seu desejo de o ouvir sobre o que sabia sobre o Brasil. Obedecendo, Diego começa fazendo uma exposição da geografia do Brasil e dos hábitos e costumes das raças humanas que lá vivem. Descreve as províncias imensas, os enormes e majestosos rios, as florestas riquíssimas; e conta os usos estranhos, as tradições, a vida dos povos selvagens.  Passa em seguida a narrar quais os vegetais que lá abundam, as flores mimosas ou magníficas, os frutos abundantes e deliciosos, as preciosas madeiras seculares, os animais estranhos e variados da terra, do mar e dos rios , as aves multicolores, os inúmeros mariscos e as grandes baleias. 
                  Havia três anos que Diego chegara à França com o sentido de encontrar nesta viagem qualquer maneira de poder reformar os bárbaros costumes dos selvagens. lembrando-se sempre daquela pobre gente, meditava no regresso, a fim de prosseguir na sua vontade de salvar os selvagens da sua triste condição. 
                   Foi então que o rei Henrique lhe ofereceu auxílio, forças, apoio e recompensa se ele aceitasse ir ao Brasil por conta da França. Diogo agradeceu, mas recusou, pois antes de tudo era português e a Portugal pertenciam as terras brasileiras que descobrira. Admira Du-Plessis, o capitão do navio que o trouxera, a sua nobre atitude, e associa-se à sua nova empreitada. Parte a nau levando a seu bordo Diego e Paraguassú. Não longe iam já do Equador quando Paraguassú, que orava, caiu num êxtase, não sabendo os que a rodeavam se era desmaiada ou morta, e assim esteve muitas horas transfigurada. 
                   Voltado a si, narra a todos a estranha visão que tivera. Vira o futuro; a Bahia transformada numa grande e vistosa cidade; depois a invasão dos franceses e as horríveis guerras que se lhe seguiriam, distinguindo-se nelas vários heróis portugueses: Pedro Lopes de Souza, Luiz de Mello e Silva, Cristóvão Jacques, Mendo de Sá, Estácio de Sá, e outros, até que os invasores franceses foram expulsos e abatidos, e a voz do Evangelho domina na branda paz, espraiando-se pelas almas escuras que ilumina. Esta paz bendita durou setenta anos. Porém, eis que chega agora novo bando de invasores sequiosos das riquezas do Brasil. desta vez são os holandeses. Novas batalhas e novos heróis surgem, tais como o destemido Furtado de Mendonça, Menezes e outros. 
                  E estando Paraguassú neste ponto da sua narrativa, que todos escutam com assombro, de súbito se levanta medonha tempestade que a interrompe, correndo os marinheiros e Diogo às manobras. 
IX
                  Serenada a tempestade e branda a noite, todos se juntaram novamente, ardendo de curiosidade, em torno de Paraguassú, pedindo-lhe que continuasse a narrativa da sua visão. 
                  É aqui que ela conta a grande guerra com os holandeses, que durou quinze anos com alternativas de vitórias e derrotas, renascendo constantemente o valor português,  ao qual se unia o invencível valor dos povos brasileiros, de Mathias de Albuquerque, João Fernandes Vieira, e os dois heróis imortais Camarão e Henrique Dias. Termina por fim a tremenda luta pelo desbarato completo dos holandeses, que, desanimados, desistem da tentativa temerária e deixam o Brasil na paz e liberdade bem merecidas. 
                  Viu Paraguassú no seu sonho muitas coisas notáveis; viu no Brasil prósperas províncias e cidades soberbas nascer e crescer; e famosos vice-reis e prelados ilustres. 
                  Neste ponto se cala a bela Paraguassú e em novo êxtase a arrebata nova visão. Assim a deixam, esperando em breve ouvir a narrativa do sonho que a vontade celeste lhe envia. 
X
                   Terminando o seu delírio santo, conta Paraguassú o que em sonhos viu. Teve a visão divina da Virgem Mãe de Deus com seu filho celeste nos braços; e Nossa Senhora falando-lhe, disse que a tornaria a ver a terra brasileira e que a veria próspera e feliz, mas que fizesse restituir a sua santa imagem roubada e a entregasse ao culto. 
                  Todos comentavam esta visão sem a entenderem, quando, estando já à vista a terra brasileira, uma vela se aproximou do navio; dentro da embarcação vinham dois espanhóis  Gonçalez e Garcez, dois dos que Diogo salvara do naufrágio no rio, havia bastante tempo. Logo se abraçaram comovidos, e Garcez contou como de Portugal, onde tinha chegado a noticia mandada por Caramuru da sua descoberta da Bahia, haviam enviado uma nau com Pereira Coutinho destinada a fazer a conquista da Bahia. Porém os selvagens, que a principio o receberam muito bem e aceitaram suas leis e ensino de que logo no país todo se sentiu a benéfica influência, em breve, por discórdias e intrigas se tornaram inimigos. De uma vez em que Pereira Coutinho, no seu navio abordava à praia no meio de denso nevoeiro, a embarcação bateu numa rocha, onde se desfez, e então, conforme de costume, os selvagens  atacaram à gente branca, chacinando-a e devorando-a em grande parte, sendo uma das vítimas o grande Coutinho, o celebrado herói do Malabar!
                   Animou Diego com palavras de  conforto o bom Garcez, que chorava. 
                   Entretanto a nau entrava no recôncavo da Bahia e os nativos, aproximando-se e reconhecendo Caramuru e Paraguassú, recebiam-nos com mostras de grande contentamento. 
                  Du Plessis, o comandante francês, começa a fazer o seu comércio, trocando mercadorias que trazia por várias madeiras que os indígenas  iam carregando no navio, quando um selvagem, vendo numa capela interior da embarcação uma imagem da Virgem, a roubou e levou para terra. 
                  Diogo e Paraguassú, que presenciaram o roubo, entenderam então  a visão e caíram de joelhos, agradecendo a deus tal milagre, pois Paraguassú reconhecera na imagem a figura exata que em sonhos vira. 
                  Correu a abraçar e beijar e  adorar a imagem  santa; e os selvagens, admirados com fervor dos sentimentos religiosos que ela manifestava, começaram a imitá-la, pois bem sentiam que tal figura era objeto digno de veneração. Dizem assim as estrofes do poema: 
Carrega entanto o lenho desejado 
A nau de Du-Plessis, que Diego estuda, 
Que deseja em toda a terra obsequiado, 
Dando-lhe ao talho da madeira ajuda; 
Um carijó porém nisto empregado, 
Enquanto a carga em toda a nau se muda, 
Uma imagem roubou formosa e bela, 
Que a nau venera na interior capela. 
.
Observou-a Diogo na cabana
tratada dos Tupis com reverência, 
Estimando-a por coisa mais que humana, 
Que excedia dos seus a inteligência; 
Surpreendeu-se da imagem soberana
O lusitano herói; e à competência 
Com eles venerando a Mãe Divina
Chama a vê-la a piedosa Catarina. 
.
Pôs-lhe os olhos a dama; e transportada
"Esta é (disse) é esta a grã senhora
Que vi no doce sonho arrebatada. 
Mais que o sol pura, mais gentil que a aurora; 
Eis aqui! esta é a imagem venerada; 
Este era aquele roubo; entendo agora. 
Oh, minha grande sorte! Oh, imensa dita!
Isto me quis dizer a Mãe bendita!".
.
Dizendo assim com ânsia fervorosa
Prostrada abraça a imagem venerada; 
Beija-a, aperta-a, de gosto lacrimosa.
Mil saudosos ais ao céu lhe manda: 
"Aqui vos venho achar, Mãe piedosa, 
No meio (disse) desta gente infanda!
Infanda, como eu fui se o vosso lume
Não me emendara o bárbaro costume." 
.
Olha entanto suspensa a gente bruta, 
E os excessos que vê cuidando admira;
Nem concebe nas vozes que lhe escuta
Se prazer seja, se de dor suspira; 
Quanto à dama piedosa obrando vira
Qualquer imitação fazer deseja, 
E este a adora, outro abraça, e aquele a beija. 
.
O lusitano e fraco religioso
Veneraram com fé prodígio tanto, 
Lembrando-se do roubo portentoso
Com claro indício de presagio santo, 
Enquanto o brutal povo numeroso
Tudo nota em um êxtase de espanto, 
Até que a um templo em pompa veneranda
A pia multidão a imagem manda. 
.
                  Foi esta a primeira imagem de Virgem que apareceu em terra brasileira. Foi aclamada sob a invocação de Senhora da Graça, protetora da Bahia. neste grande festejo se empenhava a turba, quando se ouviu uma salva estrondosa e se avistou uma grande armada que demandava o porto. Era Thomé de Souza que chagava do reino, mandado pelo rei de Portugal como governador da Bahia. 
                  Fez então uma grande cerimônia em que  a bela Paraguassú, aparecendo coroada de plumas e com o marraque por cetro na mão, em todo o esplendor  da sua realeza, fez uma fala solene ao seu povo, anunciando-lhe paz e prosperidade sob o jugo doce e paternal da grande nação lusa, que estendia o seu império até aos confins do mundo. 
Findo o seu discurso, tirou a coroa, que entregou a Souza, assim como o marraque, insígnia de soberania, e, descendo do trono, para lá convidou o governador a subir e lhe prestou homenagem. 
                  Diogo então aclamou o rei  na pessoa do governador, e os selvagens compreenderam que Thomé de Souza era agora a quem eles deveriam obediência. 
                  A estrofe sobre este momento é a seguinte:
Logo o Caramuru na língua do estilo
das naturais falando ao chefe novo, 
Posto tudo em silêncio para ouvi-lo, 
O escudo da Bahia mostra ao povo; 
A pomba de Noé, que ao noto asilo
Com ramo de oliveira vem de novo, 
Dando a entender a paz que à crua gente 
Com a fé dispensava o rei clemente. 
.
                 Entrou a Bahia num período de prosperidade, e os missionários  espalharam a doutrina cristã, abrandando-se os costumes e aceitando aqueles povos a civilização sem serem oprimidos pelos colonos. 
                  Thomé de Souza publica um decreto real em que é mandado honrar na colônia Diego Alvares Correia, que vive feliz com sua esposa, e por todos é estimado. 
.
Pesquisa, resumo e adaptação do poema por
Nicéas Romeo Zanchett 
.

BREVE BIOGRAFIA DE SANTA RITA DURÃO 
                  O frei José de Santa Rita Durão, nasceu em Cata Preta, em 1722. Foi um religioso agostiniano brasileiro do período colonial, orador e poeta. É também considerado um dos precursores do indianismo no Brasil. Caramuru foi seu poema épico e a primeira obra narrativa escrita a ter como tema o habitante nativo do Brasil; Foi inspirada e escrita no estilo de Luiz de Camões.  Estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro até os dez anos de idade, partindo em seguida para a Europa, onde se tornara padre agostiniano. Doutorou-se em Filosofia e Teologia pela Universidade de Coimbra e, em seguida, lá ocupou uma cátedra de Teologia. 
                   Em Coimbra, durante o governo de Pombal, foi perseguido e teve de abandonar o país. Trabalhou em Roma como bibliotecário durante mais de vinte anos, até a queda de seu grande inimigo Pombal, quando então pode voltar para Portugal.  Esteve também na Espanha e na França. 
                   Com a queda de Pombal aconteceu a restauração da cultura passadista, e a sua principal atividade passou a ser a redação de Caramuru, publicado em 1781. Esta obra é seu grande poema  épico de dez cantos, que foi influenciado pelo modelo camoniano. Formado por oitavas e criadas e incluindo informação erudita sobre a flora e fauna  brasileiras, como também sobre os índios e sua cultura. Conta-se, entretanto, que sua obra seria muito maior, mas como a reação da crítica e do público foi muito fria, ele teria destruído o restante da obra poética. 
                    Morreu em Lisboa no dia 24 de Janeiro de 1784. 
Nicéas Romeo Zanchett




                  

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A VOZ DAS PEDRAS - Por Coelho Netto


A VOZ DAS PEDRAS 
 Por Coelho Netto 
               Áspero, todo eriçado de rochas, o solo estéril forrado de pedregulho, sem a grata folhagem de uma árvore, só com hirtas spatas de secos e amarelos agaves, o sítio lúgubre atroava com o retumbar das águas estrondosas dum rápido que espumava, refervendo em cachões, no fundo da grota donde subia uma auréola de névoa na qual o sol recurvava um iris deslumbrante. As mesmas águias impávidas fugiam, a largo voo, daquela paragem de pavor, só os morcegos e os mochos viviam em locas: uns oscilando pendurados pelas asas às arestas das pedras, outros imóveis, de olhos muito abertos, como emblemas de tristeza pousados no fundo lapidar das cavas. 
                Tal era o sítio funerário de onde, todas as tardes, subiam os brados melancólicos que assombravam os pastores e faziam uivar os rafeiros assustados. Desde que o sol  começava a pender para as serras ninguém ousava passar nas imediações daquele lugar sinistro. O mesmo gado, ao soarem Trindades, descia atropeladamente, fugindo à beira do vale, a mugir, abalar como assombrado de algo que vira. Cada qual narrava um caso e, nas cabanas, ao luzir do fogo, falava-se baixinho do encanto do vale. 
                 Tão diversas fábulas narravam os homens tímidos, que eu quis conhecer a verdade e resolvi descer afoitamente ao vale. Ofertas que fiz aos rústicos para que me acompanhassem foram todas rejeitadas, e não houve uma voz que animasse o meu desejo, todas vinham enfraquecê-lo com presságios de morte: 
                - Que ide buscar, senhor? Não vos queirais medir com o que é do inferno. Se fiais nas armas é porque não conheceis o inimigo - não há ferro que o penetre, nem bala que lhe faça mossa. 
                 Deixei as palavras medrosas e, atendendo à minha resolução, parti. 
                 Seguindo a trilha sinuosa que abre, através da floresta, uma passagem sombria, ouvindo os pios das aves recolhidas, gozando o aroma das flores entreabertas, antes mesmo de chegar à rampa alcantilada ouvi a voz do encanto a gemer no silêncio da tarde lívida. 
                 Detive-me irresoluto, mas violentando a coragem, prossegui e, deixando as últimas árvores, dei com a grota, tão negra que a noite parecia nela condensar-se, subindo e espalhando-se nos ares como fumo espesso. 
                 Uma voz proferia; prestei o ouvido ao clamor e logo distingui um nome de mulher. Abeirando-me da rampa abrupta, inclinando-me agarrado aos pendidos ramos, pude ver, pude ouvir. 
                 Parando no fundo da grota um moço bradava. Era um rapaz de herdade que eu sempre tivera por idiota ao vê-lo, no campo, falando às árvores e aos passarinhos, beijando as flores ou, de pé, à beira do riacho, chorando sobre as águas. Perdera a noiva, dissera-me, e vivia a recordá-la percorrendo os seus lugares preferidos, acariciando as flores e as árvores que ela mais quisera e pedindo aos pássaros que andam nos ares, que levassem as suas saudades ao Paraíso.
                 Era ele... Pobre duende amoroso! Reconhecendo-o logo resolvi descer e lá fui, resvalando pela ribanceira, até o fundo da grota pedregosa. 
                 O moço bradava e o eco respondia. Cheguei-me ao triste e, tirando-o do enlevo em que jazia, interroguei-o:
                 - Que fazeis? 
                 - Ouço-lhe a voz. Todas as tardes com o silêncio, desço ao vale, reclamo da morte e o espírito da minha amada, e interrogo-o para convencer-me de que ainda me não esqueceu e também para não deixar que se desvaneça a lembrança do que juramos. Ela era ainda uma louquinha quando morreu - sorria a todos... e lá em cima há tantos jovens formosos que se foram da terra no melhor dos anos... Quereis ouvi-la? 
                  E o mísero bradou o doce nome e logo o vale atroou se-turno. 
                  - Mas são as pedras que vos respondem, disse eu; é o eco que torna aos vossos ouvidos em som, que é o que há de material na palavra, o espírito, que é a ideia, desaparece no ar. Não é a vossa amada que vos responde,são as rochas do vale que refletem os vossos brados. Se quereis convencer-vos, deixai-me chamar a vossa amada. 
                  E bradei; e as pedras retumbaram. O moço fitou-me pálido e assombrado. de novo bradei, de de novo o eco repetiu o meu brado. Então? fitei nele os olhos - o mísero chorava e por entre soluços disse-me: 
                  - Vieste matar a ilusão da minha alma. Eu vivia por ela, chorando e bendizendo a sua morte porque, se sinto a falta do seu rosto formoso não a vejo sorris aos outros como sorria, e agora que o túmulo a conserva presa, certo de que era só minha, ainda a encontro volúvel como era em vida, respondendo a todos como a todos respondia. Ai! de mim, ai! de mim! 
                 - Mas são as pedras que respondem. 
                 - As pedras... e seria também de pedra o seu coração para que a todos respondesse? A quantas jurou ela amor? a quantos! nem a morte corrigiu. Ela aqui jaz enterrada e do fundo da cova responde com a mesma facilidade com que atendia ao apelo dos moços que iam encontrá-la, sorrindo, junto à sebe florida do seu jardim. Não são as pedras que respondem, é o seu próprio coração que fala. Ela foi sempre volúvel! Ela foi sempre volúvel!...
                E o mísero rompeu a soluçar tão alto que as pedras, talvez com pena, soluçaram com ele. 
                Oh! a voz da mulher ingrata é como a dos vales côncavos. Que há nos vales vazios?  A bruma efêmera que se desfaz igual às juras dos corações volúveis. 
                Escondei-vos, namorados, e mandai que outro invoque o amor da vossa amada, mas fugi em tempo para não terdes o desengano. Ai! de mim...
                E eis como eu descobri o encanto e desfiz o assombro do vale triste... 
                Hoje há um homem que foge ao lugar sinistro; é o louco enamorado que lá não volta, porque, como se tornou o caso conhecido, o rapazio do lugarejo ajunta-se no vale e brada pela morta infiel e a todos as pedras respondem... O mísero, de longe, ouvindo o clamor e... 
                Quantos corações são feitos daquelas pedras...

BREVE BIOGRAFIA 
Henrique Coelho Netto, escritor e romancista brasileiro, nasceu em Caxias, Maranhão, em 1864. Pertenceu a Academia Brasileira de letras. A sua obra é muito extensa, compreende mais de sessenta trabalhos, entre romances, novelas, contos e obras de teatro. Foi professor do Ginásio do Rio de Janeiro. Escreveu: Rapsódias, contos; A capital Federal, romance; Praia, novela; Baladilhas, contos; Inverno em Flor, romance; O Morto, romance; A descoberta da Índia, narrativa histórica, etc. Morreu no Rio de Janeiro em 28 de novembro de 1934. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O ANEL DE POLICRATES - Por Machado de Assis


O ANEL DE POLICRATES 
Por Machado de Assis
.
                 A - Lá vai o Xavier. 
                 Z - Conhece o Xavier? 
                 A - Ha que anos? Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo. ..
                 Z - Que rico? que pródigo? 
                 A - Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia língua de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres!  Nem toda a pompa de Salomão pode dar ideia do que era Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as  prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente por uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier.  Capeava os cigarros com um papel  de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha d raios de sol. As colchas da cama eram nuvens purpúreas, e assim também a esteira que forrava  o sofá de repouso, a poltrona da secretária e a rede. Sabe quem lhe fazia o café de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor de rosa, que Homero lhe pôs. Pobre Xavier! Tudo oque o capricho e a riqueza podem dar, o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável, tudo teve e devia ter, porque era um galhardo rapaz, e um bom coração. Ah! fortuna, fortuna! Onde estão agora as pérolas, os diamantes, as estrelas, as nuvens purpúreas? Tudo perdeu, tudo deixou ir por água abaixo; o néctar virou zurrapa, os coxins são a pedra dura da rua, não manda estrelas às senhoras, nem tem arcanjos às suas ordens... 
                 Z - Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda  com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo. 
                 A - Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo... 
                 Z - Ah! - Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro... 
                 A - desde quando o conhece?  
                 Z - Ha uns quinze anos.
                 A - Upa! Conheço-o ha muito mais tempo, desde que  ele estreou na rua do Ouvidor, em pleno marquês do Paraná. Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis,  e até contrarias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra á lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos.  Quem conversava com ele senti vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime. Note que ele tinha a convicção dos seus mesmos inventos.  Um dia, por exemplo, acordou com o plano de arrasar o morro do castelo, a troco das riquezas que  os jesuítas ali deixaram, segundo o povo crê. Calculou-as logo em mil contos, inventariou-as com muito cuidado, separou o que era moeda, mil contos, do que eram obras de arte e pedrarias; descreveu minuciosamente os objetos, deu-me dois tocheiros de ouro...
                 Z - Realmente... 
                 A - Ah! impagável. Quer saber de outra? Tinha lido as cartas do cônego Benigno, e resolveu ir  logo ao sertão da Bahia, procurar a cidade misteriosa. Expôs-me o plano, descreveu-me a arquitetura provável da cidade, os templos, os palácios, gênero etrusco, os rito, os vasos, as roupas, os costumes...   
                 Z - Era então doido? 
                 A - Originalzão apenas? Odeio os carneiros de Panurgio, dizia ele, citando Rabelais: Comme vous sacavez estre du mouton le naturel, tousjours suivre le premier, quelque part qu'il aille. Comparava a trivialidade a uma mesa redonda de hospedaria, e jurava que antes de comer um mau bife em mesa separada. 
                 Z - Entretanto gostava da sociedade.
                 A - Gostava da sociedade, mas não amava os sócios.  Um amigo nosso, o Pires, fez-lhe um dia esse reparo; e sabe o que lhe respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia de água, e a sociedade uma banheira. - Ora, eu não posso lavar-me em cuias de água, foi a sua conclusão. 
                 Z - Nada modesto. Que lhe disse o Pires? 
                 A - O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, de aí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu-o muito, com entusiasmo; esquecera-se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva-me à explicação da atual miséria do Xavier.
                 Z - É verdade, não sei como se possa explicar que um nababo... 
                 A - Explica-se facilmente. Ele espalhava ideias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que  era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar-se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental; a palavra era o derivativo. As páginas que então falava, os capítulos que lhe borbotavam da boca, só precisavam de uma arte de os imprimir no ar, e depois no papel, para serem páginas e capítulos excelentes, alguns admiráveis. Nem tudo era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os seus cochilos.  Espalhava tudo, ao acaso,às mãos cheias, sem ver onde as sementes iam cair; algumas pegavam logo...
                 Z - Como a das cuias.
                 A - Como a das cuias. Mas, o semeador tinha a paixão das coisas belas, e, uma vez que a árvore fosse pomposa e verde, não lhe perguntava nunca pela semente sua mãe. Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência  de regime, não admira que fosse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito tem limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol.  O Xavier não só perdeu as ideias que tinha, mas até exauriu a faculdade de criar; ficou oque sabemos. Que moeda rara se lhe hoje nas mãos? que sestércio de Horácio? que drama de Péricles? Nada. Gasta o seu lugar-comum, rafado das mãos dos outros, come à mesa redonda, fez-se trivial, chocho...
                 Z - Cuia, emfim. 
                 A - Justamente: cuia. 
                 Z - Pois muito me conta. Não sabia nada disso. fico inteirado; adeus. 
                 A - Vai a negócio? 
                 Z - Vou a um negócio. 
                 A - Dá-me dez minutos? 
                 Z  - Dou-lhe quinze. 
                 A - Quero referir-lhe a passagem mais interessante da  vida de Xavier. Aceite o meu abraço, e vamos andando. Vai para a praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, - "uma bonita rosa"; falava do luar saudoso, do sacerdócio da imprensa, dos jantares opíparos  sem acrescentar ao menos um relevo qualquer a toda essa chaparia de algibebe. Começara a ficar hipocondríaco; e, um dia, estando à janela, triste, desabusado das coisas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se,   e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha. Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue frio, a arte do cavaleiro.  Então, o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E dai veio uma ideia;comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: "Quem não for cavaleiro, que o pareça." Realmente, não era uma ideia extraordinária; mas a penúria do Xavier tocara a tal extremo, que esse cristal pareceu-lhe um diamante. Ele repetiu-a dez ou doze vezes, formulou-a de vários modos, ora na ordem natural, pondo primeiro a definição, depois o complemento; ora dando-lhe a marcha inversa, trocando palavras, medindo-as, etc.; e tão alegre, tão alegre como a casa de pobre em dia de peru. De noite, sonhou que efetivamente montava um cavalo manhoso, que este pinoteava com ele e o sacudia a um brejo. Acordou triste; a manhã, que era de domingo e chuvosa, ainda mais o entristeceu; meteu-se a ler e a cismar. Então lembrou-se... Conhece o caso do anel de Policrates? 
                 Z - Francamente, não. 
                 A - Nem eu; mas aqui vai oque me disse Xavier. Policrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grane sacrifício; deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna estava tão apostada de cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engulido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... 
                 Z - Não ponha mais na carta. O Xavier naturalmente comparou a vida, não a um cavalo, mas... 
                 A - Nada disso. Não é capaz de adivinhar o plano estrambólico do pobre diabo. Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha ideia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Policrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão. 
                 Z - Ora essa!
                 A - Não é estrambótico? Policrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica. Saiu de casa, encontrou um amigo, travou conversa, escolheu assunto, e acabou dizendo oque era a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça. Dita assim, esta frase era talvez fria; por isso o Xavier teve o cuidado de descrever primeiro a sua tristeza, o desconsolo dos anos, o malogro dos esforços  ou antes, os efeitos da imprevidência, e quando o peixe ficou de boca aberta, digo, quando a comoção do amigo chegou ao cume, foi que lhe atirou o anel, e fugiu a meter-se em casa. Isto que lhe conto é natural, crê-se, não é impossível; mas agora começa a juntar-se à realidade uma alta dose de imaginação. Seja o que for, repito oque ele me disse. Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com uma troca de um adjetivo. " Meu pobre anel, disse-lhe ele, eis-te emfim no peixe de Policrates." Mas a ideia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá-la na memória. Resignou-se.  Dias depois, foi convidado a um baile; era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu um grupo de pessoas que louvava a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu compara o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê-lo, e o barão era- excelente. " - Entra, meu querido anel, disse Xavier, entra no dedo de Policrates." Mas de novo a ideia bate as asas, sem querer ouvi-lo. Dias depois... 
                Z - Adivinho o resto: uma série de encontros e fugas do mesmo gênero.
                A - Justo. 
                Z - Mas, emfim, apanhou-o um dia.
                A - Um dia só, e foi então que me contou o caso digno de memória. Tão contente que ele estava nesse dia! Jurou-me que ia escrever, a propósito disto um conto fantástico, à maneira de Edgardo Poe,  uma página fulgurante, pontuada de mistérios, - s~]ao as suas próprias expressões; - e pediu-me que o fosse ver no dia seguinte. Fui; o anel fugira-lhe outra vez. "Meu caro A, disse-me ele, com um sorriso fino e sarcástico; tens em mim o Policrates do caiporismo; nomeio-te meu ministro honorário e gratuito."  Dai em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha por a mão em cima da ideia, ela batia as asas, plas, plas, plas, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engoli e trazia, e sempre o mesmo desenlace. Mas dos casos que ele me contou naquele dia, que dizer-lhe três... 
                 Z - Não posso; lá se vão os quinze minuto. 
                 A - Conto-lhe só três. Um dia, o Xavier chegou a crer que podia emfim agarrar a fugitiva, e fincá-la perpetuamente no cérebro. Abriu um jornal de oposição, e leu estupefato estas palavras: "O ministério parece ignorar que a política é, como a vida, um cavalo xucro ou manhoso, e, não podendo ser bom cavaleiro, porque nunca o foi, devia ao menos parecer que o é." Ah! emfim, exclamou Xavier, cá estás engastado no bucho do peixe; já me não podes fugir. Mas, em vão! a ideia fugia-lhe, sem deixar outro vestígio mais do que uma confusa reminiscência. Sombrio, desesperado, começou a andar, a andar, até que a noite caiu; passando por um teatro, entrou; muta gente, muitas luzes, muita alegria; o coração aquietou-se-lhe. Cumulo de benefícios; era uma comédia do Pires, uma comédia nova. Sentou-se  ao pé do autor, aplaudiu a obra com entusiasmo, com sincero amor de artista e de irmão. No segundo ato, cena VIII, estremeceu. "D. Eugênia, diz o galã a uma senhora, o cavalo pode ser comparado à vida, que é também um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro, deve cuidar de parecer que o é." O autor com olhar tímido, espiava no rosto do Xavier o efeito daquela reflexão, enquanto o Xavier repetia a mesma súplica das outras vezes: - "Meu querido anel..."
                 Z - Et nunc et semper... Venha o último encontro, que são horas. 
                 A - O último foi primeiro. Já disse que o Xavier transmitira a ideia a um amigo. Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre vê-lo; e o infeliz ainda o pode conhecer, estender-lhe a mão fria e trêmula, cravar-lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar-lhe: " Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou-me ao chão; se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcei por parecê-lo bom." Não se ria; ele contou-me isto com lágrimas. Contou-me também que a ideia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois  estalou um risinho de escarno, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo-se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus. 
.
BREVE BIOGRAFIA 
Joaquim Maria Machado de Assis, poeta e romancista brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 21 de Junho de 1839 e faleceu em 25 de Setembro de 1908. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi até morrer o seu presidente sempre reeleito. Escreveu: Crisalidas, 1864; Falenas, 1870; Americanas, 1875, três volumes de versos que o consagraram como poeta. Da sua vasta obra de romancista temos: Don Casmurro; Quincas Borba; Memórias póstumas de Brás Cuba, 1881; Memoriam de Aires; Helena; Jayá Garcia; A mão e a Luva. Para o teatro escreveu: O caminho d posta; Uma Ode de Anacreonte. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.
              







terça-feira, 27 de agosto de 2013

O ENTERRO - Por Coelho Neto


O ENTERRO 
 Por Coelho Neto 
               Outubro. O sol, em pleno meio-dia, alargava por todo o campo uma luz fixa e cáustica. Não havia sombra, tudo resplandecia de claridade e um tédio pesado e morno de preguiça parecia ter-se apoderado das próprias coisas, prendendo-as numa imobilidade morta, de onde nem mesmo o bulir das folhas tirava o doce murmúrio, tão agradável ao ouvido de quem trabalha sob rude prancha de uma soalheira viva. 
                Nas escarpas, esterilmente nuas, cabras, berravam com melancolia, e, de momento em momento, um boi magro surgia entre as palhas secas dos milhos, lento, estafado e mole, esticava o pescoço esfolado pela canga e mugia, ficando depois com o focinho à altura das praganas louras, contemplativo e tristonho, a olhar o céu de um azul liso e forte. 
                Por baixo, num largo planalto de terra vermelha, limpa de fresco, recentemente gredada, uma charrua arrastava-se ao passo tardo de dois touros. 
                Do céu quente, sob a radiação nevrótica do sol, caía uma paz cansada, e na vasta planície nua, toda de restolho, ceifada de extremo a extremo, erguia-se apenas um casebre tosco, metido dentro de um cercado, à sombra quieta de um mangueiral ramalhoso.  
                 A par da estrada, de um amarelo sujo e peco, orlada de espinhais mirrados, corria, murmuroso e pesado, o rio sonolento, onde a figura solitária de uma lavadeira brandia panos, metida n'água até aos joelhos.  No alto de um monte, fechado de mato intenso, ardia tremulamente, fumarando espirais de cor turquesa nova, um fogo de estio, aceso espontaneamente, como outrora arderam no cume do Sinai as sarças de onde surgiu Jeová ditando a Moisés as leis do Decálogo.  
                 Para além andava-se em recua, gente miúda, pequena como as ervas rentes, diminuída consideravelmente pela distância, mourejava; ouvia-se o relincho prolongado de um carro primitivo, que vinha sulcando a terra com rodas compactas, atulhado de lenha.
                  De repente uma voz fina partiu a cantar gemedoramente e, antes de morrer de todo, um coro tomou do eco e entoou o mesmo canto, num ritornelo grave. Dois homens, a cavalo, surgiram detrás da barranca; em seguida as madrinhas, duas vacas mansas, tinindo cincerros; a boiada depois, submissa e vagarosa, turbilhonando o pó vermelho da estrada, e por fim um magote de campeiros, pampilho em punho, cantando numa toada indolente o coro pastoral. 
                  A tropa ganhou o campo. Reboaram gritos de: - EH! Ahuu! EH! lou! cá, cá, cá, ehou!
                  E o gado  solto, tresmalhou na pastagem, começando, à luz intensa e abafada, o rouco mugir dos touros, um após outro, dois a um tempo, e o galope dos bezerros, enquanto os guieiros, pulando abaixo dos lombilhos, desciam na direção do rio, juntos, ficando um só de guarda. 
                  O céu, para os lados do oriente, ia tomando uma cor baça de mercúrio e começava a arejar o escampo uma brisa fraca, trescalando a queima. 
                  Aves piavam e no alto giravam malabarescamente urubus de atalaia. De vez em quando, no cercado do casebre, um galo soava a voz estrídula, e outros, daqui e de lá, numa sucessão pausada, cocoricavam em resposta. 
                  Rolavam, de longe em longe, como num aviso de tormenta próxima, surdos rumores de trovões; mas a luz, cada vez mais incendida, cada vez mais escaldante e mais clara, parecia desmentir o anúncio da tempestade. Revoadas de pombos cruzavam com um tatalar sonoro, seguindo o rumo do vento, numa batida rápida, e, no quintalejo do casebre, um vulto de mulher, alta e fina, estacou entre os capins baixos, levou a mão espalmada à altura dos olhos, fitou a luz, e lentamente começou a recolher a roupa que corava no verde estendal de grama, enquanto um menino ia e vinha, a correr, carregando à cabeça paveias de capim novo, e as aves domésticas, cacarejando, acoutavam-se debaixo da ramaria frondosa das mangueiras. O vento começava a zurzir as folhas e escurecia com a rapidez com que descem os crepúsculos no inverno. 
                  Um frêmito de claridade percorreu todo o céu argamassado de nuvens e o rumor trovejante roncou mais forte, mais próximo, mais demorado; o ar pesava sufocante e, de vez em vez, circulava um redemoinho de poeira, em funil, dentro do qual ricocheteavam folhas. 
                   O dobre de um sino encheu momentaneamente o silêncio com a vibração ondulante de um misticismo meigo; outro dobre ressoou mais brando, como se partisse de mais longe, e logo após um, forte e claro, conforme as voltas bruscas do vento que soprava grosso. 
                  Dobrava afinados. Era o saimento da Teçaí, velha cabocla septuagenária, descendente dos fortíssimos Goytacazes, nascida e criada nesse lugar, primeiramente chamada de Taba de Itamina, pelo constante forgacho que ardia no monte, que diziam ser a alma pagã de Tagiíra, morta ao trocar o primeiro beijo, fulminada por Tupan justamente quando ia entregar a sua virgindade à volúpia brutal de um aventureiro branco. 
                  A gente simples de Itamina respeitava e temia a velha Teçaí, uns pelas suas pragas e malefícios, outros pelo terror da lenda que se criara em torno do seu nome. 
                  "Teçaí, a mãe das lágrimas, diziam em trovas os bardos das serranias, era filha da Yara Poranghi, fecundada por um raio de lua nova em Agosto. Nascera em uma Sexta-feira, à noite, à hora do primeiro cantar do galo. Na sua mocidade seus olhos tinham o poder de envenenar os homens e eram tão fortes seus olhos que, se por acaso se levantavam para o céu, as estrelas de Deus caíam moribundas." 
                   Era por isso que Itamina, à noite, quando no céu passava uma estrela cadente, os rústicos, perseguindo-se, diziam: 
                   - Mais uma vítima dos olhos maus de Teçaí! 
                   Os que conheceram a moça falavam com assombro da sua grande beleza, mas ninguém se bagou jamais de a ter possuído. 
Sobre os seus cabelos corria uma tradição ingênua e poética. Dizia uma canção: 
                   " Nos cheirosos cabelos de Taçaí, longos, negros e sedosos, nascem rosas e cravos, lírios e bogaris. "
                   " A cabeça de Teçaí é como um jardim cuidado - as flores das suas tranças dormem em botões fechados e, pela manhãzinha, justamente como as do campo, acordam desabrochadas." 
                    A poesia popular inspirara-se na estranha paixão índia pelas flores; porque ela andava sempre toucada de ramilhetes acreditavam que eles nasciam nos seus cabelos cheirosos.  
                    Á noite, os que viajavam, passando junto ao rio, achavam-na a bailar, falando á lua e às águas numa linguagem singular. Durante o dia cultivava a sua horta, junto à igreja.
                    Sucumbira de velhice, diziam, e lá ia o seu enterro triste, acompanhado por um borrego malhado, seu único amigo, e os que a levavam; ninguém mais.  O sino, entretanto, gemia pela pagã, a igreja abençoava a bárbara,   mas o céu, a mais e mais fechado, parecia trancar-se para não receber a alma infiel da índia feiticeira, cujo corpo encarquilhado ia a caminho da cova, ao tinir da sineta e ao triste balar do borrego, encerrado em uma arca, que nem um caixão lhe deram os piedosos cristãos de Itamina. 
                    Súbito, um clarão instantâneo iluminou o campo; durante uma pausa, o sino vibrou choroso, mas um formidável estrondo atroou os ares, abalando a terra; outro, logo em seguida, com um estalar de raio. Os bois assustados deitaram a correr aos galões, através da planície. Num ápice todos os campeiros montaram e a um grito partiram rebolando o sedenho, cravando de rijo as chilenas, atrás do gado que sumia perseguido pelos roncos da tormenta, na direção de um vale seco, cavado entre rochas. Mas a chuva varreu o campo, grossa, rabanando, açoitada por um vento desabrido que se levantara.  Sucediam-se os relâmpagos e os trovões ribombavam; longe, os gritos dos campeiros que afrontavam a tempestade brandindo os compridos ferrões, e além, o borrego da defunta, parado, indeciso, balando sob o aguaceiro, a olhar comovedoramente os homens que corriam sacolejando a morta dentro da velha arca. 
                   Sereno, tranquilo, continuando a bater à porta do céu com a sua prece, o sino, entretanto, insistia no seu ofício de religioso, triste, no púlpito do campanário, rezando pela morta o seu piedoso Réquiem monossilábico de sons. 
BREVE BIOGRAFIA 
Henrique Coelho Neto, escritor r romancista brasileiro, nasceu em Caxias, Maranhão, em 1864. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.  A sua obra, muito extensa, compreende mais de sessenta trabalhos, entre romances, novelas, contos e obras de teatro. Foi professor no Ginásio do Rio de Janeiro. Escreveu: Rapsódias, contos; A Capital Federal, romance; Praga, novela; Baladilhas, contos; Inverno em flor, romance; O Morto; romance; A descoberta da índia., narrativa histórica. Por muito tempo foi o escritor mais lido do Brasil. Por esta obra, você podem ter uma ideia de sua grandiosidade literária. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.