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sábado, 6 de agosto de 2016

TERESINHA - Por Amélia de Freitas Beviláqua

Foto de Amélia com o marido.
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TERESINHA 
        Assim que empurrei a porta do seu quarto, ouvi de dentro um grito pavoroso: 
        - Não Senhora! Não pode entrar, que estou me vestindo!
        Fiquei atordoada, perdi as cores, um relâmpago de raiva passou-me pela vista. Obedeci; porém, todo o resto do dia me perguntei: Porque será? - Não compreendi absolutamente esse procedimento. Toda a vida nos vestimos juntas. Como ela carregava as sobrancelhas! Que expressão rancorosa!... 
         Nunca pensei que me acontecesse tamanha decepção!... Fiquei sóbria. O despeito amargurou-me a vida, quase chorei; grandes cismas me apoquentaram o espírito excitado e nervoso, a revolver-me no anseio de uma grande curiosidade. 
          No dia seguinte, ainda muito desgostosa, arrastava sensaboronamente triste a minha carruagem de bonecas pelo corredor que se comunicava com o jardim, e quase ao enfrentar a porta, avistei-a na extremidade do toilette. A luz do gaz caia em cheio sobre o seu rosto, fazendo-o resplandecer com uma beleza mística de rosa admiravelmente bela, exposta aos raios do sol, na hora do crepúsculo, quando a natureza começa a adormecer. Estava realmente linda; pareceu-me até mais aurosa e mais crescida.  Sinto que não poderei reproduzir mais nunca a impressão que recebi nesse momento. Durante um instante olhei-a muito comovida, como se tivesse visto uma dessas miragens flutuantes que nos aparecem nos sonhos. Impressionou-me essa imagem de cabelos loiros caídos pelo rosto; porém, no mesmo instante  lembrei-me do império com que ousara me repreender na véspera e segui-a com o olhar prescrutador; queria adivinhar o íntimo de seus penamentos. Meu despeito ainda estava muito vivo, precisava de uma desforra. Nunca me tinham falado com tanta rudeza como essa. Teresinha que eu estava olhando ironicamente , essa prima querida, a minha predileta! Sabia andar pelas salas, deslisando suavemente como se arrastasse olhares atrás dos seus encantos; recitava com intonações de tribuna, e até densava valsas nos salões como se fosse uma moça! 
          Que aborrecimento! Bem me importava que seu rosto fosse bonito, que soubesse ler e recitar... Tudo isso eu aprenderia; em breve também seria considerada moça; o principal era saber porque  a vaidosa não me deixava entrar no toilette quando se vestia. Um desaforo! Tinha muita queixa, estava realmente zangada e enfurecida contra aquela mulher pequenina! Que distância era essa que nos separava?! Como se os seus doze anos me fizessem medo... 
          Jurei vingar-me. Deixei-a distrair-se e entrei um dia furtivamente no quarto proibido, pisando leve, muito macia, escondi-me debaixo da cama, comprimindo a respiração, morrendo quase asfixiada, porém, não perdendo um único de seus movimentos. Era um desses aposentos preparados a capricho, o seu gabinete de vestir, elegante, perfumado, cheio de todas as ninharias de que se utilizam as moças bonitas. Um ninho amoroso mesmo. Antes de começar o seu galante preparo, fechou cuidadosamente a porta, trancou, aferrolhou, e para melhor segurança encostou mais uma cadeira. Passou os olhos pelo quarto, revistou-o de lado a lado. Estava sozinha... Tirou os sapatos, e as meias. Começou a andar por todo o espaço do toilette. Às vezes seus pés delicados, muito alvos, rosados nos dedos, bem cavalados, salientando as dobras deixadas pelos sapatinhos velhos e acalcanhados, pisavam tão perto de mim que eu me encolhia com medo que eles me sentissem... Depois, colocada em frente do espelho, sorriu-se esfregou a boca na manga do vestido, examinou os dentes, perfumou o colo, os braços, todo o corpo. Sempre olhando para o espelho, pintou de carmim as faces e os lábios, finalmente seduzida pelo seu próprio encanto beijou apaixonadamente o vidro que a refletia com arrebatamento de beleza tão grande! 
          - Sou muito formosa; muito linda mesmo! 
          Um barulho qualquer sobressaltou-a, revistou os recantos do quarto ainda mais sobressaltada, desconfiada e minuciosa. 
         O pente caiu no assoalho, um passo mais e eu estava perdida. 
         Felizmente o seu olhar vagueava muito aéreo. Ensaiou uns passos de dança, garganteou uma canção e continuou a despir-se. 
         Em primeiro lugar tirou o vestidinho branco, depois o corpinho, em seguida a anágua muito rendada com cercaduras de bordado. Ia tirar a camisa... Ainda olhou desconfiada os arredores do aposento. 
         Quando eu vi o primeiro movimento, tive um frêmito de alegria tão grande, que não pude mais me conter. 
          Saí do meu esconderijo, corri batendo palmas, doidamente feliz e ameacei-a de contar tudo, absolutamente tudo! 
          - Que apresentação! disse-me ela muito corada com um sorriso pálido. 

BREVE BIOGRAFIA DE AMÉLIA
Amélia de Freitas Beviláqua nasceu em 7 de Agosto de 1860 e faleceu em 17 de Novembro de 1946. Formada bacharel em advocacia e precursora na luta pelo direito de igualdade das mulheres. Foi uma grande escritora brasileira de origem piauiense, casada com Clávio Beviláqua. Publicou contos e romances além de escrever como jornalista, o que era raro em sua época. Publicou: Alcione, contos, 1902; Aspectos; Silhuetas; Através da vida. 
Existe muito sobre ela: é só pesquisar na internet. 
Meu objetivo em Gotas de Literatura Brasileira e levar um pouco de conhecimento sobre nossos escritores do passado que, devido às novas formas de comunicação, os jovens da atualidade estão deixando no esquecimento. 
Nicéas Romeo Zanchett

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