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quarta-feira, 13 de abril de 2011

CAÇADA - José de Alencar

                    CAÇADA - De O GUARANI- José de Alencar
Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam "aimará", apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, côr de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos prêtos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da fôrça e da inteligência.
Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam ao lado esquerdo duas plumas matizadas, que, descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos dilicadas; a perna ágil e ervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sôbre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e a flexa com amão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de  si um longo forcado de pau enegrecido pelofogo.
Ali, por entre a folhagem, distingüiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vêzes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sôbre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor de sangue da vítima.
O índio, sorrindo e molemente encostado ao tronco sêco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimígo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na estrada da clareira.
Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertara o forcado, endireitou-se de nôvo; sem deixar a sua posição,  nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.
Estendeu o braço e fêz com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.
Como, porém o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as fôlhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:
- É meu!...meu só!
Estas palavras foram ditas em português com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.
O italiano riu.
- Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga? ... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo, ela vo-lo agradecerá.
Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro.
Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demostração ofenciva.
Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
A um sinal de Álvaro Sá, os cavaleiros prosseguiram a marcha, e entranharam-se de novo na floresta.
O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pêlo eriçado, não ousava investir nem retirar-se temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.
Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e seu adversário uma distância de trinta palmos.
 O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto: a onça, com seus instintos carniceiros e a sêde voraz de sangue, tinha visto os cavalos e desdenhava o homem, fraca prêsa para saciá-la.
Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou da cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço, e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço à sua altura.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi aompanhado por um bramido da fera: a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoutando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.
O tigre tinha se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente.
Era uma luta de morte que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranqüilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a prêsa lhe escapasse, desaparecera; estava satisfeito.
Assim, êstes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.
O tigre deste vez não se demorou; apenas se achou a quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortado pelo raio.
Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas  patas de trás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos para cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que viram brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.
Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.
Como a princípio, o índio tinha dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais, e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.
Então o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote: fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa no chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.
Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sôbre a forquilha, mantinha assim  imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.
Quando o animal, quase esfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou um corda de "ticum" que tinha enrolada à cintura em muita voltas.
Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.
Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro bravo, que tornou côva, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que a prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.
José de Alencar ( José Martiniano de Alencar) - O GUARANI
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Pesquisa e postagem
Nicéas Romeo Zanchett
http://gotasdeculturauniversal.blogspot.com/

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