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domingo, 10 de abril de 2011

SINHÁ - LINDA - de Guimarães Rosa





                                          SINHA - LINDA - Guimarães Rosa
E então Lélio via, na rua, o Assis Tropeiro conversando com o pai da Moça. E viu a Moça. Naquele momento, o que ele sentiu foi quase diferente de sua vida toda. A modo precisasse de repente de se ser no pino de bonito, de forçoso, de rico, grande demais em vantagens, mais do que homem, da ponta do bico da bota até o tope do chapéu.  Tinha vexame de tudo o que era e do que não era. Ave, na vivice do rosto daquela Mocinha, nos movimentos espertos de seu corpo, sucedia o resumo de uma lembrança sem paragens. Dava para em homem se estremecer mais uma ambição do que uma saudade. Ou, então, uma saudade gloriada, assim confusa. Se ela olhasse e mandasse, ele tinha asas, gostava de poder ir longe, até à distância do mundo, por ela estrepolir, fazer o que fosse, - guerrear, não voltar - essas ilusões. Ela tinha os cabelos quase acobreados, cortados curto, os pezinhos um pouquinho grandes. E nem o viu.  A tropa saia na manhã seguinte, por Paredão, depois do Lajeado. Num pronto, Lélio disse ao Assis Tropeiro uma conversa de que podia ir junto, até à Novilha Brava, de onde se apartava e torava para o norte. Veio mesmo.
A moça, com o pai, o senhor Gabino, a mãe, dona Luísa, um irmão doutor e outros dois rapazes, que eram do Rio de Janeiro. Lélio estava ali para a ver, agarrar de ver, às penas que pudesse, sempre, sempre. Vê-la, e a ouvir, bastava. Primeiro dia, da ponta de trilhos vieram até ao Lajeado. - "Será que já é o sertão?" - ela queria saber. O sertão, igual ao Gerais, dobra sempre mais para diante, territórios. - "Mas já é o Sertão, sim!" - ela queria e exclamava:  - "Tanto sol, tanta luz! Este céu é o da Itália..." Ela montava vestida de homem, como um menino. Às vezes dizia engraçadas palavras, se divertia a rodo, com os rapazes. Segundo dia, o trecho era do Lajeado ao Capão-do-Barreiro, onde tem uma vereda grande, com o buritizal, com uma lagoa. Sendo o mês de setembro, o buriti floroso - os altos cachos amarelos de ouro. - "O buriti é a palmeira de Deus!" - ela disse, disse. Lélio se lembrava dos gestos de sua mãe, e, como esses vaqueiros do Alto Urucuia, relatava coisas ao cavalo.  Mas se contentava, sem pensamento, perto de tudo. Ela estava com um plastro branco na ponta de um dedo, machucado em qualquer parte.  Seu nome era que lindo por lindo, qual retinia. No que não havia risco de ninguém ver, pois já estavam de saia, ele o escreveu, porção de vezes, nas costas das folhas das piteiras. Mas ao cavalinho pampa os nomes que dela disse foram outros: Minha-Menina, a Mocinhazinha, Sinhá-Linda... E vinham na terceira etapa - do Capão-do-Barreiro ao Paredão - lá iam demorar o inteiro de um dia, por descanso e porque a Moça queria encontrar coisas de vista. Ela era elegante sem querer, parece que nem sabiá que era.  Perguntou a Lélio o nome de um passarinho: era uma maria-tola do cerrado, ele não considerou decente responder uma bobagem dessa, achou melhor dizer que não sabia. Porque não tinha sido um sabiá ou um sofrê;  mesmo o quem-quem - que em toda baixada de campo limpo navegava, aos pares, pulando atrás dos bois? Os olhos dela rebrilhavam, reproduzindo folha de faca nova. O olhar, o riso, semelhavam a itaberaba das encostas pontilhadas de malacacheta, ao comprido sol.  Como podia se guardar tanto poder numa criaturinha tão mindinha de corpo?  Aí Lélio não queria alçar o galho, nem dar-se em espetáculo; mas carecia, necessitava de serví-la, de oferecer-lhe alguma coisa. Como viu que ela deseja sempre provar das comidas e bebidas sertanejas - achara choco o chá de congonha, mas aparecia muito  o de cagaiteira, que é dourado lindo e delicado e tem os suaves perfumes. No Porto-do-Cavalo, ele pensou  o projeto, mal pôde dormir. Acordou antes do dia, montou e galopou meia-légua, até onde estavam dizendo que se conseguia achar um doce de buriti, bom especial.  Comprou, mesmo com a tigela grande - não queria vender aquela tigela, bonita, pintada com avoejos verdes e  roxas flores. Trouxe, deu a ela, receoso, labasco, sem nenhuma palavra podida.  Ela riu, provou e sacudiu a cabecinha: disse aos rapazes que era um doce groceiro, ruim.  Nem olhara mais para Lélio. Mas ele ouviu, desriu em cara suja, e coube em si pelo resto do dia. Porém, no seguinte, na fazenda da Extrema, à tarde, por uma acaso ele pôde ver seus pezinhos, que ela lavava, à beira de água corrente. Demorou agudo os olhos, no susto de um roubado momento, e era como se os tivesse beijado: nunca antes soubera que pudesse haver uns pezinhos assim, bonitos alvos e rosados, aquela visão jamais esqueceria. Custou assentar cabeça. Modo outro não foram todos aqueles dias, que mudavam o estranho de sua vida, e eram dias desigualados, no rio rodante do mundo, da ponta das manhãs até ao subir extenso das noites, com o milmilhar de estrelas do sertão.  E força foi que enfim ela apartasse e se despedisse, no partirem do pouso na Fazenda da Novilha  Brava, depois do Ribeirão do Gado Bravo, que então ele devia beiradear, rumo das nascentes.  Até que se alegrava, nem sabia exato porque, na hora de pedir adeus. Talvez pela importância de ter de ser então notado, de poder dirigir-se altamente a ela, ele risonho e perturbado, em seu cavalo de duas cores. Tanto ela sorriu, estendeu-lhe a mãozinha abreviadamente, nem macia, perguntando-lhe mesmo por que não persistia junto, até ao Paracatu. Ah, sentia, não podia... - ele produziu de responder. Nem tudo  podia ser como nós queremos... Mas já ela se afastava, o amesquinhando, de certo, gracejava com um dos rapazes, por último que falou ainda se ouvia: - "...Mesmo porque, ora essa!..."
Um vivido. O resto era o que-ha-de-vir. Lélio não se entristecia, sabia que nunca mais havia de encontrá-la, mas tudo de começo tinha sido mesmo sem nenhuma esperança pequena, ele não era louco, o fogo é que corre com os pés para cima.  Mas também não atinava com maneira de verdade para a esquecer,  por mais difícil do que matar uma palmeira ouricuri - que até cortada e caída no chão reenraíza: guarda sua água no profundo. Pensar nela dava a sobre-coragem, um gole de poder de futuro. 
Mesmo agora, descido no comum da vida, querendo outras mulheres, de carinhos fortes; mas, depois, um instante, primeiro de dormir, pensava nela, ao acautelado, ao leve. Pensava nela, assim só como se estivesse rezando. 
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De João Guimarães Rosa.  Corpo de Baile. 
Pesquiza e postagem > Nicéas Romeo Zanchett 
http://gotasdeculturauniversal.blogspot.com/

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